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A desumanização da política nas Eleições 2026

Entre estigmas, afetos e retóricas de ódio, o Brasil perde o debate de ideias e transforma adversários em inimigos. A política se esvazia de conteúdo, e resta à cidadania o desafio de reumanizar o convívio democrático. Leia a análise completa feita pelo jornalista Gaudêncio Torquato

Seja quem for o candidato à Presidência da República em 2026 — Lula, Bolsonaro ou algum de seus herdeiros políticos —, é provável que o pleito reproduza a lógica da divisão entre “nós e eles”, “petralhas” contra “bolsominions”, “esquerdistas” versus “direitistas”. O Brasil atravessa uma das fases mais polarizadas de sua história republicana. Embora a polarização não seja fenômeno novo em nossa trajetória política, ela já foi sustentada por projetos de país — como o nacionalismo, o desenvolvimentismo, o trabalhismo. Hoje, a disputa é personalizada: fulanos contra sicranos. O conteúdo cede lugar ao confronto de identidades.

A polarização contemporânea assume a forma de uma guerra simbólica, em que os adversários não buscam se vencer por meio de ideias, argumentos ou propostas, mas sim por meio de rótulos e estigmas. A linguagem política atual tende a negar a humanidade do outro, reduzindo-o a caricatura. Por isso, falamos em desumanização da política — um ciclo marcado pela intolerância, pelo ódio e por práticas discursivas que transformam o adversário em inimigo moral.

Sob essa lógica, o antagonista é visto como ser inferior, indigno de respeito, numa retórica maniqueísta em que “os bons” enfrentam “os maus”. A crítica política dá lugar à demonização do outro, tornando inviável qualquer forma de diálogo ou construção conjunta. Esse fenômeno está presente em muitos regimes democráticos, onde cresce a preocupação com o esvaziamento ético da vida pública.

Entre as causas dessa degradação, destacam-se a despolitização da cidadania, a perda de referências ideológicas e a transformação da política — antes concebida como missão — em profissão ou negócio. A lógica clientelista do “toma lá, dá cá” reforça a coisificação da política brasileira, desfigurando seu papel como instrumento coletivo de organização social.

Hannah Arendt advertia que, ao reduzir a política a simples troca de interesses, abandona-se sua dimensão transformadora. Platão e Aristóteles, ao conceberem a política como arte do bem comum, atribuíram-lhe o papel de organizar racionalmente a vida em sociedade. A política coisificada, por outro lado, fragmenta, rebaixa e ameaça os alicerces da democracia ao substituir o debate público por disputas sectárias e interesses privados.

A desumanização transforma adversários em inimigos e legitima práticas autoritárias. A escalada da polarização costuma vir acompanhada de atos violentos e atentados contra instituições democráticas. Exemplos não faltam: a invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, em 6 de janeiro de 2021, e a depredação das sedes dos Três Poderes, em Brasília, em 8 de janeiro de 2023, são manifestações extremas de uma política que perdeu o senso de medida e o compromisso com o convívio democrático.

Arendt também alertava que a criação e manipulação do medo são instrumentos centrais nos regimes autoritários. A ansiedade social — alimentada pela crença de que determinados grupos representam uma ameaça à ordem — é frequentemente instrumentalizada por líderes populistas para justificar a concentração de poder e o ataque a direitos civis. A história oferece provas eloquentes disso.

A desumanização da política é, hoje, objeto crescente de investigação acadêmica. Estudo conduzido pelos professores Christopher D. Petsko (Universidade da Carolina do Norte) e Nour S. Kteily (Northwestern University) analisou como conservadores e liberais se percebem mutuamente nos Estados Unidos. Segundo a pesquisa, os liberais tendem a ver os conservadores como brutais e violentos, enquanto os conservadores descrevem os liberais como imaturos e infantis. A hostilidade mútua, intensificada durante a presidência de Donald Trump, deixa marcas profundas no tecido social.

Trump, com seu discurso agressivo e performático, ampliou a visibilidade de uma retórica de rancor, transformando a política em espetáculo. Ao responsabilizar imigrantes, minorias e opositores pelas crises econômicas e sociais, desviou o debate das causas estruturais dos problemas nacionais e aprofundou divisões. A cobertura midiática, aliada à viralização do discurso nas redes sociais, contribuiu para a naturalização do antagonismo e da linguagem desumanizadora.

No Brasil, a situação tem características similares, embora com nuances próprias. A polarização não se dá entre dois partidos bem estruturados, como nos Estados Unidos, mas entre campos de poder mais fluidos — governo e oposição —, muitas vezes representados por figuras que já não expressam programas políticos claros ou consistentes. A retórica se sustenta em símbolos e afetos, mais do que em ideias.

Lula, embora provenha de uma tradição progressista, governa com uma base heterogênea, que inclui partidos de esquerda, centro e direita, o que enfraquece a coerência ideológica de seu governo. Bolsonaro, por sua vez, embora se apresente como conservador, assume posições que muitas vezes colidem com esse ideário — especialmente no que diz respeito à relação com o Estado e à defesa da propriedade privada.

Diante desse cenário, cabe perguntar: como resgatar o sentido clássico de política, tal como concebido por Aristóteles — como a arte de promover a vida em comum? Como reumanizar a política brasileira?

A resposta passa, inevitavelmente, pela educação. A formação cidadã é a única via capaz de restaurar o valor da política como serviço público e espaço de convivência democrática. É pela educação que se formam sujeitos críticos, abertos ao diálogo, comprometidos com a ética e atentos ao bem comum. É pela educação que um território se transforma em Nação.

Maurício Tovar

Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político

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