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INFLUÊNCIA INTELIGENTE TODO DIA

O "chiste" freudiano, pensado entre a "brincadeira" e a "tirada espirituosa"

O psicanalista Edson Manzan Corsi apresenta considerações teóricas e clínicas que perpassam o uso freudiano do termo alemão der Witz, traduzido geralmente como chiste; mas que pode ser visto de outras formas, ao se pensar o conceito em sua possibilidade de ser vertido para o português.

Sigmund Freud

A prática psicanalítica pode muito se embeber do que, no alemão, é chamado der Witz, traduzível como piada, gracejo, pilhéria, jogo de palavras jocoso, ou como se consagrou na tradução de Sigmund Freud no Brasil, chiste.

Freud vê, nessa "tirada" espirituosa, uma manifestação do inconsciente, que pode aportar espontaneamente no discurso do paciente em associação livre, ou mesmo servir como modo de intervenção do psicanalista, sobre o discurso ao qual escuta. Esta manifestação do inconsciente seria figurada como, por exemplo, um sonho, por condensação e deslocamento, mediante junção, disjunção e aproveitamento da similaridade sonora de vocábulos; resultando em um rebaixamento do recalque, em seu teor de brincadeira, de jogo aliviante e prazeroso socialmente permitido, ao então tocar em conteúdos inconscientes não assimiláveis, portanto, na consciência, e que seriam passíveis de serem ao menos aventados e parcialmente gozados pelo uso do chiste, dessa formação linguajeira inteligente, sucinta e sempre prenhe de possibilidades semânticas.

Assim, o chiste descortina algo no sujeito ou sobre o mesmo que se afigura passível de contribuir para aumento de percepções ante o recalcado; de possibilidades interventivas ao longo do processo analítico. Em termos técnicos, penso que, além de chiste, uma maneira bem interessante de verter der Witz para o português seria representá-lo simplesmente como "brincadeira". Pois tratar-se-ia de palavra de uso mais corrente na língua comum, podendo, desse modo, trazer de fato para a clínica a leveza, e propriedade mesmo de compartilhamento comum deste fenômeno do Witz, já que ele é sempre claramente um discurso dirigido a um (ou mais) sujeitos talvez suscetíveis a compartilhar de seu teor gozante; como a brincadeira se apresenta em seu aspecto de jogo, no que concerne ao social.

Ainda, "brincadeira" é vocábulo que remete ao entendimento clínico agudo e sólido do grande psicanalista inglês Winnicott (1975), que entende o processo psicanalítico em si como um brincar, a ascender entre o psicanalista e o paciente, seja no tocante à análise de crianças ou adultos, tratando-se de visada lúdico-técnica propiciadora de ambiência discursiva, interativa - gozante. Vale ressaltar que, em Winnicott, o brincar viabiliza a comunicação; consigo, como também propicia uma melhor lida com a alteridade. Na sessão psicanalítica, é tecido certo espaço e temporalidade próprios, que obtêm similitudes com espaço e temporalidade das intersecções entre mãe (ou cuidador) e bebê, e elas devem ser perspectivadas enquanto referencial para a sessão analítica.

O labor do analista conecta-se com a sustentabilidade do brincar do paciente - que ocorre em um espaço e tempo estabelecido transferencialmente. A aderência ao espaço e tempo da análise, e ao ato de brincar, deve advir de ambos, paciente e analista, senão a brincadeira não é plausível. Dentro desse espaço potencial - o interno se externaliza, e o tempo antigo e a expectativa quanto ao futuro se juntam ao presente. Não existe mais disjunção evidente entre o que está fora e o que é psíquico.

Fala-se de um âmbito teatral, no qual existe, padece e alegra-se a dupla paciente e analista. Em dramatização que apenas adquire corpo se for investida afetivamente, e mantida como se esta brincadeira fosse tão sólida quanto a realidade socialmente delimitada. A sessão, assim, constrói certo espaço de passagem entre o mundo interno e o externo, vindo a ser propícia a reconfigurar a transicionalidade infantil, e, desse modo, e nesse ínterim; funcionam os efeitos analíticos. O chiste, aqui, pode ser visualizado como uma das formações do inconsciente que se dão no espaço potencial de brincadeira da transferência, e, por seu efeito jocoso, pode de fato ser assimilado qual "brincadeira" potencial, em si divertidamente comunicativa, propiciadora intensa dos efeitos de convivência lúdica do processo analítico, entrevisto no que promove esta dupla: analista-paciente.

Em todo caso, apesar de, pelas razões apresentadas, soar-nos como boa opção tradutória, o vocábulo "brincadeira" pode ser por demais polissêmico, e, no senso comum, trazer o aspecto de algo a não ser tomado a sério, ou até descartável. O que não configura o caso sobre o aparecimento do(s) chiste(s) na sessão analítica, ou da técnica winnicottiana voltada ao brincar, que abre espaço ao lúdico e criativo, mas sempre de modo técnico e conceitualmente bem embasado.

Então, outra opção que se parece melhor em português do que chiste, ou (talvez) menos polissêmica que "brincadeira", seria "tirada espirituosa", que se aproxima do wit inglês, em sua inteligência e abertura semântica produtiva enquanto enunciado, e remete (o wit) bastante etimologicamente ao próprio der Witz.

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