Ir direto para o conteúdo
INFLUÊNCIA INTELIGENTE TODO DIA

O atual Papa Leão XIV revoga a figura do Inferno medieval

E agora, para onde vão os pecadores? Papa Leão XIV redefine o inferno como um estado interior de separação de Deus, rompendo com a tradição medieval e aproximando-se das concepções espirituais de Allan Kardec. Saiba mais na análise de Abílio Wolney Aires Neto.

Qual a resposta filosófica do “o que sou?”, “de onde vim?” e “para onde vou?”

“A religião é baseada principalmente em cima do medo. Medo do desconhecido, medo do misterioso, medo da derrota, medo da morte. O medo é a fonte da crueldade e, portanto, não é de se estranhar que a crueldade e a religião tenham andado de mãos dadas durante todos estes anos.” — Bertrand Russell (1927)

A provocação de Bertrand Russell, revisitada nas reflexões teológicas contemporâneas, denuncia o medo como base histórica da religião. Durante séculos, o temor da morte e do castigo sustentou a ideia do inferno como instrumento de controle espiritual e moral.

Contudo, o Papa Leão XIV trouxe uma releitura simbólica dessa doutrina ao afirmar que “o inferno, na concepção bíblica, não é um lugar, mas uma condição de dor, solidão e separação de Deus; contudo, Cristo entra até mesmo lá para libertar a humanidade.” Essa interpretação desloca a fé do campo do medo para o da consciência. O inferno deixa de ser um espaço físico para tornar-se uma experiência interior — o vazio espiritual do afastamento de Deus.

Essa visão coincide com o ensinamento do Catecismo da Igreja Católica, segundo o qual o inferno é “estado de separação definitiva de Deus” (§1033), e encontra eco em Santo Agostinho, que afirmava ser “a ausência de Deus o maior de todos os sofrimentos.” Assim, Leão XIV propõe uma espiritualidade fundada no amor e não na ameaça. Se o medo produziu a crueldade, como advertiu Russell, o amor e a misericórdia tornam-se o novo eixo da fé. Cristo, ao “descer aos infernos”, desce simbolicamente às zonas mais obscuras da alma humana, mostrando que nenhuma dor está fora do alcance da redenção.

Curiosamente, essa visão já fora antecipada pela codificação espírita de Allan Kardec. Em O Livro dos Espíritos (1857), Kardec pergunta: “Haverá lugares circunscritos no universo destinados às penas e às recompensas das almas, após a morte?” Os Espíritos respondem:

“Não; as almas encontram a sua própria punição ou felicidade no estado de suas imperfeições ou de suas virtudes. O inferno e o paraíso existem em toda parte.”

Mais tarde, em O Céu e o Inferno (1865), Kardec reforça:

“O dogma das penas eternas fez mais incrédulos do que fiéis, porque repugna à razão e à justiça. O inferno e o paraíso são estados da alma, não lugares fixos.”

Para o Espiritismo, o sofrimento é transitório e educativo, fruto das próprias imperfeições humanas — e não de castigos divinos. A diferença entre as duas tradições é clara: para a Igreja, o inferno é definitivo; para o Espiritismo, é temporário e reparador. No entanto, há uma convergência profunda: ambas negam o inferno geográfico e defendem que o sofrimento é um reflexo moral, não uma punição arbitrária.

A crítica de Russell completa o quadro ao mostrar que o medo da religião pode dar lugar à compreensão da fé como libertação. A nova teologia de Leão XIV e a filosofia moral do Espiritismo se encontram nesse ponto: o inferno é solidão, o céu é comunhão. O medo divide; o amor reconcilia.

Apesar da abordagem mais existencial e misericordiosa proposta pelo Papa Leão XIV — de que o inferno não seria um lugar geográfico, mas uma condição de separação de Deus —, a reflexão abre espaço para uma crítica legítima: há, de fato, uma espécie de “abolição” ou reformulação de antigas doutrinas. E isso suscita perguntas sobre a consistência e a autoridade da Igreja para modificá-las ao longo dos séculos.

Um exemplo recente é a doutrina do Limbo das crianças mortas sem batismo. Em 2007, o Papa Bento XVI aprovou o documento da Comissão Teológica Internacional, A Esperança da Salvação para as Crianças que Morrem sem Batismo, no qual se afirma que “há sérias bases teológicas e litúrgicas para esperar que existam vias de salvação para as crianças não batizadas” e que a teoria medieval do limbo era uma “visão indevidamente restritiva da salvação.” A mudança indica que uma crença amplamente aceita foi, na prática, retirada da centralidade doutrinal.

Além disso, o Papa João Paulo II, em 12 de março de 2000, presidiu um ato penitencial na Basílica de São Pedro, reconhecendo “os pecados cometidos por membros da Igreja ao longo dos séculos” e pedindo perdão pelas faltas “especialmente durante o segundo milênio” — incluindo as divisões entre cristãos, o uso da violência em nome da verdade e as atitudes hostis para com seguidores de outras religiões. Esse gesto é amplamente interpretado como reconhecimento de erros institucionais e doutrinários.

Esses exemplos reforçam que, ao longo dos séculos, a Igreja Católica tem revogado, reformado ou reinterpretado doutrinas, concílios e práticas — como já fizera no caso de Galileu Galilei e a ciência heliocêntrica. E isso suscita o questionamento: se uma doutrina essencial pode ser reformulada, qual a solidez da autoridade doutrinal e de qual “verdade” se fala?

Por outro lado, a tradição espírita — desde Kardec, com O Livro dos Espíritos (1857) e O Céu e o Inferno (1865) — apresenta uma doutrina contínua, sem antecedentes de “revogação institucional” ou imposições dogmáticas posteriormente abandonadas. Pode-se argumentar que o Espiritismo mantém uma coerência histórica maior, sem modificações papais ou conciliares que alterem seus fundamentos.

Essa “ficha limpa” doutrinária deve ser vista com cautela — nenhuma tradição humana está isenta de críticas —, mas serve como contraponto à constatação de que a Igreja Católica, historicamente, adapta-se às circunstâncias. A noção moderna de “inferno como estado” parece, portanto, integrar um movimento mais amplo de reinterpretação teológica e institucional, e não apenas uma descoberta espiritual isolada.

Em síntese, a “abolição” simbólica do inferno como lugar físico — e do limbo como estado fixo — revela que os ensinamentos religiosos não são imutáveis. Tal mutabilidade pode fragilizar a autoridade dos que os proclamam, mas também abre caminho para uma fé mais madura, menos baseada no medo e mais centrada no amor, na liberdade e na consciência.

Uma natural indagação, porém, permanece:

Se o inferno já não possui geolocalização, para onde foram os que nele estariam eternamente condenados?

Para onde foram as crianças não batizadas do purgatório extinto?

E onde se localiza, afinal, o céu?

Se o inferno deixou de ter longitude e latitude, não seria justo aplicar a mesma ausência geográfica ao céu imaginário do repouso eterno e contemplativo?

Há pelos dois milênios os pecadores não redimidos habitavam o inferno eterno. Mas esse inferno geográfico não existia: foi agora revogado das bulas e concílios.

O céu e o inferno estão dentro de nós, dizia Jesus. Sócrates havia dito que, para onde quer que possamos ir, levaremos conosco o céu e o inferno — que estão, antes de tudo, em nossa consciência, pois é nela que está escrita a lei de Deus.


Referências

  • RUSSELL, Bertrand. Por que não sou cristão. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957.
  • KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 1857. Rio de Janeiro: FEB, 2013.
  • KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno. 1865. Rio de Janeiro: FEB, 2018.
  • Catecismo da Igreja Católica, §§1033–1037.
  • LEÃO XIV, Papa. Vaticano, 2025.
  • AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus. São Paulo: Paulus, 2016.
  • Comissão Teológica Internacional. A Esperança da Salvação para as Crianças que Morrem sem Batismo. Vaticano, 2007.
  • JOÃO PAULO II. Ato de Pedido de Perdão pelos Pecados da Igreja. Vaticano, 12 mar. 2000.

Comentários

Mais recente

Solidão como aliada

Solidão como aliada

A psicóloga, música e escritora Ana Paula de Siqueira Leão traz consideração sucinta, mas bem fundamentada, sobre a temática da solidão (e como nos relacionamos com ela).

Membros Livre