Ir direto para o conteúdo
INFLUÊNCIA INTELIGENTE TODO DIA

Justiça na Espanha. Daniel Alves absolvido: uma análise do raciocínio judicial

Professor Jordi Ferrer Beltrán, diretor do mestrado em raciocínio probatório da Universidade de Girona, analisa em artigo a controvérsia gerada pela sentença de apelação do caso Daniel Alves. Seu conhecimento jurídico aponta uma perspectiva crucial sobre a prova em processos judiciais dessa natureza

O ex-jogador de futebol Daniel Alves durante o julgamento na Audiência de Barcelona. (Crédito: Europa Press/D. Zorrakino)

Sumário

Por JORDI FERRER BELTRÁN

Uma vez tornada pública a sentença de apelação que absolve o sr. Daniel Alves do crime de agressão sexual, desencadeou-se na Espanha uma tempestade. Vemos como organizações diversas e até alguns juristas fazem declarações contundentes e reivindicam que, em casos desse tipo, deve-se sempre dar credibilidade à vítima, recorrendo ao famoso “Eu acredito em você”. No entanto, o mais perigoso é ver como pessoas em cargos políticos importantes priorizam essa credibilidade em detrimento da presunção de inocência, que protege toda pessoa submetida a um processo penal. Tudo isso, claro, transmitindo uma preocupante sensação de que sequer leram a sentença que criticam.

No meu caso, antes de escrever este artigo, li a sentença três vezes, prestando especial atenção ao seu raciocínio probatório, que é o essencial neste caso. É evidente que esse raciocínio, e o próprio julgamento, não teriam sentido se decidíssemos, como sociedade, que em casos de agressão sexual bastaria a mera denúncia por parte da suposta vítima para condenar. Essa seria a versão extrema para a qual nos levaria o “eu acredito em você”. No entanto, no Direito, não basta uma denúncia para condenar uma pessoa, mesmo que esta apresente um relato coerente e plausível: são necessárias provas que confirmem, até um certo ponto que consideremos suficiente (nunca será uma certeza objetiva), que os fatos ocorreram como relata a denunciante.

“No Direito, não basta uma denúncia para condenar uma pessoa, ainda que apresente um relato coerente e plausível: são necessárias provas que atestem até um certo ponto que consideremos suficiente.”

Apesar de uma tradição inveterada no âmbito jurídico, o fato de algo ser considerado provado em um processo judicial não depende de os juízes ou juízas chegarem a uma convicção subjetiva ou acreditarem que o relatado por uma das partes é verdadeiro. Sustentar o contrário corresponde a uma concepção subjetivista ou persuasiva da prova, que tem implicações incompatíveis com o devido processo legal. Por isso, o que importa é se as provas apresentadas no processo corroboram suficientemente a hipótese acusatória (coincidente, neste caso, com o relato da denunciante). Para isso, é necessário avaliar a confiabilidade de cada uma das provas, determinar o grau de corroboração ou apoio que, em seu conjunto, fornecem à hipótese e, finalmente, justificar se esse grau de corroboração é suficiente, de acordo com o padrão de prova aplicável, para derrotar a presunção de inocência. Esses passos estão corretamente explicitados no fundamento jurídico 6.10.1 da sentença de apelação.

Algumas das críticas dirigidas à sentença partem dessa concepção subjetivista da prova, argumentando que o tribunal de apelação não esteve presente na produção da prova e, por isso, deveria ser deferente à valorização realizada pelos juízes de primeira instância, que tiveram acesso direto aos depoimentos testemunhais, periciais etc. Mas em que se fundamentaria essa suposta prioridade epistêmica do juiz de primeira instância? Frequentemente se responde que o acesso direto às provas pessoais permite avaliar aspectos como a comunicação não verbal das pessoas declarantes, o que teria relevância para sua credibilidade. No entanto, a evidência científica demonstra que não há nada na comunicação não verbal que seja indicativo da veracidade ou falsidade do que é declarado. A sentença de apelação lembra bem que o relevante aqui não é o quão crível o depoimento parece ao juiz, mas sim a confiabilidade do que é dito. O primeiro critério é subjetivo; o segundo depende da coerência do relato, de sua compatibilidade com o que sabemos sobre o mundo e com as demais provas do processo. E tudo isso pode ser perfeitamente examinado em segunda instância, especialmente por meio da análise das gravações em vídeo do julgamento e da leitura ou observação das provas documentais e periciais.

Com tudo isso, deve-se verificar se a hipótese acusatória possui um grau de apoio probatório suficiente para atender às exigências do padrão de prova requerido para a condenação. Esse padrão foi formulado com bastante precisão nas sentenças do Tribunal Supremo 136/2022, de 16 de fevereiro, e 23/2023, de 20 de janeiro. De acordo com essa jurisprudência (que infelizmente não é estável nem mesmo na atuação de nosso mais alto Tribunal), uma hipótese acusatória não está em condições de derrotar a presunção de inocência.

  1. Se não for capaz de explicar os dados disponíveis sobre os fatos do caso apresentados no processo por meio de provas que foram consideradas confiáveis, integrando-os de forma coerente
  2. Se os fatos comprovados pelas provas consideradas confiáveis são compatíveis, não só com a hipótese acusatória, mas também com outras plausíveis, mais favoráveis ao acusado
  3. Se os fatos comprovados pelas provas consideradas confiáveis são compatíveis com a hipótese formulada pela defesa, que também dispõe de provas de descarrego a seu favor. Uma formulação substancialmente equivalente, mas com algum elemento adicional, foi apresentada no meu livro Prova sem convicção. Padrões de prova e devido processo.

Pois bem, a sentença de apelação realiza uma análise cuidadosa da fundamentação da sentença de primeira instância, bem como da confiabilidade das diversas provas apresentadas neste processo e, em especial, da compatibilidade do relato da denunciante com as provas disponíveis, a fim de determinar se está ou não corroborado por estas.

É de se destacar que estamos diante de um caso em que o acervo probatório é significativamente mais rico do que costuma ocorrer nos processos por agressões sexuais. Sabemos que Daniel Alves estava em um reservatório da discoteca onde os fatos ocorreram com um amigo e que convidaram algumas garotas (a denunciante e duas amigas), que também se encontravam na mesma discoteca. A denunciante e as amigas, declarando como testemunhas, relataram que, uma vez no reservatório, houve um ambiente de desconforto devido à atitude “babosa” de Alves e de seu amigo, a ponto de insistirem de forma que a denunciante temesse que, se saíssem, pudessem ser seguidas por eles. Mas isso, a denunciante teria entrado no banheiro do reservatório para falar com Alves e pedir que cessassem tal atitude e que as deixassem ir embora. Essas declarações devem ser postas em relação às outras provas disponíveis, em particular as gravações das câmeras de segurança da discoteca onde os fatos ocorreram, nas quais pode ser visto tudo o que se passou até o momento em que a denunciante e Daniel Alves entraram no banheiro do reservatório. Pois bem, conforme já declarava a sentença de primeira instância e confirma a de apelação:

“[…] Não se observa, nas câmeras, que a denunciante e suas amigas estejam desconfortáveis ou que a denunciante não esteja à vontade, que não aceite ou não tenha vontade de continuar a festa com as pessoas que acabara de conhecer. Ela é vista participando da dança com o acusado da mesma forma que quaisquer outras pessoas dispostas a se divertir. E até se pode notar que existe uma certa cumplicidade.

Daí que não pareça razoável a versão da denunciante de que foi falar com o acusado na área do banheiro por medo de que, após a discoteca, esses rapazes pudessem segui-las e fazer algo a ela e às suas amigas”.

Essas mesmas câmeras registraram que Daniel Alves entrou no banheiro do reservatório e que dois minutos depois, depois de falar com suas amigas e deixar-lhes sua taça, entrou a denunciante. Nesse banheiro, onde não há câmeras, obviamente, teriam ocorrido os fatos denunciados como agressão sexual, consistentes em uma penetração vaginal não consentida. A denunciante sofreu, além disso, uma lesão abrasiva no joelho que teria ocorrido no contexto do ato sexual forçado e violento.

“É doutrina reiterada do Supremo Tribunal espanhol, seguida de forma constante por toda a jurisprudência, que, nos delitos sexuais, o relato da pessoa denunciante, ainda que coerente e plausível, não é suficiente como prova.”

Destacam com razão as sentenças de primeira instância e de apelação que nada impede que ocorra uma agressão sexual se não houver, por parte das pessoas envolvidas, um consentimento expresso e continuado para a relação sexual, por mais que antes houvesse entre elas um ambiente descontraído e festivo — e mesmo se as duas pessoas envolvidas tivessem entrado no banheiro com a intenção de ter relações sexuais.

Por isso, deve-se submeter à hipótese de que, naquele banheiro, ocorreu uma agressão sexual em contraste com as provas. E aí a hipótese acusatória se mostra novamente fraca, pois, em alguns aspectos, é contrária às provas disponíveis e, em outros, é tão compatível com elas quanto a hipótese defensiva de que, naquele espaço, ocorreu uma relação sexual consentida.

Destaca, em primeiro lugar, a sentença de apelação, que aponta que a sentença de primeira instância é contraditória quanto à existência ou não de uma felação. Assim, por um lado, declara não provado o fato de que ela teria ocorrido, mas, por outro, declara provado que a lesão no joelho da jovem se deu ao forçar o acusado a que ela se ajoelhasse para realizar a felação. Ademais, os exames periciais médicos indicaram que a abrasão no joelho era compatível com causas diversas, sem que nada apontasse de forma conclusiva que se tivesse produzido em razão de uma relação forçada.

Por outro lado, na sua declaração, a denunciante negou ter realizado uma felação ao acusado, mas as provas de DNA realizadas por meio da análise do swab bucal, coletado três horas após os fatos, detectaram a presença de esmegma do acusado na boca da denunciante, o que indicaria que, com alta probabilidade, ela ocorreu.

Outro aspecto central que se mostra discordante entre as hipóteses acusatória e defensiva é o local e o modo em que ocorreu a penetração vaginal. Segundo a denunciante, o acusado a sentou sobre a pia para penetrá-la, mas não foram encontradas marcas na pia. Não é impossível que tal prática tenha sido realizada naquele local sem deixar vestígios, mas cabe dizer que as provas não corroboram o afirmado. Em contrapartida, o acusado alegou que os fatos ocorreram de forma diferente: ele teria se sentado na tampa do vaso sanitário e ela teria se ajoelhado, praticando uma felação inicialmente, para depois se sentar sobre ele. Essa versão encontraria, entretanto, certa confirmação pela prova de DNA já mencionada e pela prova dactiloscópica realizada, a qual efetivamente detectou impressões da denunciante na tampa do vaso e da palma de sua mão na cisterna do vaso, compatíveis com uma posição de apoio sobre a mesma durante os atos sexuais alegados pelo acusado (prova que foi ignorada em sua avaliação pelo juízo de primeira instância).

As declarações das amigas da vítima que a acompanhavam na discoteca, por sua vez, não trouxeram informações sobre o que ocorreu dentro do banheiro, respondendo, em muitos casos, às perguntas durante o julgamento com um “não me lembro” e, em diversos aspectos relevantes de sua declaração sobre o ocorrido no reservatório, se mostraram contraditas pelas gravações das câmeras de segurança. Por fim, a gravação da câmera corporal de um dos agentes dos Mossos d'Esquadra que se apresentaram na discoteca comprova um estado de ansiedade da denunciante, o qual pode ter diversas causas e, por si só, não comprova os fatos denunciados.

“A legítima reivindicação das organizações feministas de que as mulheres sejam levadas a sério ao denunciar uma agressão sexual deve se traduzir, sem dúvida, em uma atenção cuidadosa na recepção das denúncias e, sobretudo, em uma investigação séria e consistente do que foi alegado.”

Em resumo, é doutrina reiterada do Supremo Tribunal espanhol, seguida de forma constante por toda a jurisprudência, que, nos delitos sexuais, o relato como prova não é suficiente, mesmo que seja coerente e plausível, por parte da pessoa denunciante. É necessário que, além disso, exista uma corroboracão periférica com base nas provas apresentadas no processo. Neste caso, porém, as provas disponíveis não apenas não corroboram a hipótese acusatória, mas a colocam em questão em muitos aspectos e, em outros, são também compatíveis com a versão do acusado. O Tribunal de primeira instância optou por isolar a única parte dos fatos para a qual não há provas (a ausência de consentimento) para dizer que, em relação a ela, o relato da denunciante seria crível. Mas essa é uma inferência não justificada e não apoiada por nenhuma prova de contexto sobre o ocorrido.

Tudo isso não significa, de forma alguma, afirmar que o relato da denunciante seja falso ou que a inocência de Daniel Alves tenha sido comprovada, mas sim que o acervo probatório disponível no processo claramente não satisfaz o padrão de prova aplicável para derrotar a presunção de inocência.

Algumas críticas foram direcionadas à sentença, alegando que uma perspectiva de gênero adequada teria permitido interpretar de outro modo as imagens das câmeras de segurança da discoteca. Têm razão ao dizer que as imagens de uma gravação são muitas vezes de difícil interpretação e também que não existe uma maneira padrão nem correta de responder a uma agressão sexual ou quando uma mulher se sente assediada. Pode, perfeitamente, sentir-se bloqueada e até “seguir o jogo” na esperança de que tudo acabe o quanto antes. Mas não é fácil dar conta dessas situações em um processo judicial sem que se transformem em uma hipótese ad hoc de impossível refutação, com a consequência de que a culpa do acusado seria inferida apenas com base no relato da denunciante.

A reivindicação justificada das organizações feministas de que as mulheres sejam levadas a sério quando denunciam uma agressão sexual deve se traduzir, sem dúvida, em uma atenção cuidadosa na recepção das denúncias e, sobretudo, em uma investigação séria e consistente do alegado, de forma que as mulheres não fiquem sozinhas no julgamento, sustentando a acusação apenas com a sua palavra. Mas, se quisermos respeitar os direitos e garantias de todos os cidadãos, que nos protegem contra atuações arbitrárias do Estado, é imprescindível que também levemos a sério a prova dos fatos nos processos judiciais e que o raciocínio probatório realizado com base nela seja de qualidade. Em minha opinião, esse é o caso da sentença 109/2025.


Jordi Ferrer Beltrab

Jordi Ferrer Beltran, professor titular de Filosofia do Direito na Universidade de Girona, na Espanha


Texto publicado originalmente em 1º de abril de 2025, em espanhol, no portal Agenda Pública.

Dani Alves absuelto: un análisis del razonamiento judicial
El profesor Jordi Ferrer Beltrán, director del máster de razonamiento probatorio de la Universitat de Girona, analiza en este artículo la controversia generada por la sentencia de apelación del caso Dani Alves. Su conocimiento jurídico aporta una perspectiva crucial sobre la correcta valoración de la prueba en procesos judiciales de esta naturaleza.

Comentários

Mais recente

Por que amamos os chefes?

Por que amamos os chefes?

Nós os amamos um pouco, muito, apaixonadamente, loucamente... Ou nem um pouco, às vezes! Mas por que nos submetemos tão voluntariamente à sua autoridade? A psicologia contemporânea decifrou amplamente este enigma.

Assinantes Livre