Sumário
Feliz ou infelizmente falando, as inteligências artificiais (IA’s) vieram para ficar. A revolução tecnológica que estes assistentes virtuais trouxeram para o dia a dia da população brasileira é insubstituível e para qualquer um, com o mínimo conhecimento tecnológico, viver com elas é uma experiência única. Porém, o grande contraste da atualidade se presencia no fato de que tal avanço, apesar de trazer conforto e comodidade a seus usuários também atinge de forma invasiva e impensada setores sociais que, teoricamente, não deveriam ser por ela abrangidos.
A recente trend das IA’s geradoras de desenhos do Stúdio Ghibli, famoso estúdio de animação japonesa, expressa perfeitamente como o mau uso destas tão poderosas máquinas pode ser não só desgastante para os produtores de conteúdo artístico, mas também para o próprio meio ambiente.
Sustentabilidade das IA’s
Além de acessar um gigantesco banco de dados que desmembram obras de artistas reais, publicadas na internet, para criar as tão desejadas caricaturas, os imensos computadores, que trabalham 24 horas, também consomem uma quantidade exagerada de água para resfriar os data centers que geram estas tais imagens. Segundo uma pesquisa publicada na revista Exame no dia 02/04 (quarta-feira passada), cada 50 consultas por novas imagens no aplicativo consome um total de dois litros de água.
Apesar de parecer um valor baixo se considerados o número de procuras por gasto, é necessário lembrar que a mesma pesquisa mostrou que, em menos de uma hora, cerca de um milhão de novos usuários se registraram no serviço e geraram o equivalente a três milhões de imagens, ou seja, um gasto de 7500 litros de água por dia.
Este valor exorbitante mostra que, além de se hidratarem mais do que muitas pessoas, as IA’s também consomem uma quantidade desnecessária de matéria prima para executar funções consideradas “inúteis” para o desenvolvimento humano e tecnológico ou social. Não apenas isso, estes mesmos computadores são responsáveis por liberar o equivalente a 1,35 toneladas de gás carbono (CO2) na atmosfera diariamente, o que equivale a andar cerca de 5000 km em um carro movido a gasolina ou carregar 162 mil celulares.
Miyazaki contra as IA’s
O próprio criador dos Studios Ghibli, Hayao Miyazaki (84) já se posicionou contra “automatização” de trabalhos artísticos. Em 2016 o diretor demonstrou seu desagrado chamando as IA’s de “um insulto a própria vida”, alegando que as animações precisam transmitir emoções humanas, uma visão compartilhada não só por ele, grande detentor de uma empresa de animação bilionária, mas por uma classe inteira de desenhistas, desenvolvedores, programadores e animadores que dependem muito mais de seu trabalho para sobreviver.
Não são só os desenhos
E sucesso das IA’s geradoras de imagem são só a ponta do iceberg para quem trabalha com meios artísticos. O banco de dados de aprendizado destas máquinas é tão grande que já se pode fazer de tudo simplesmente pedindo ao Chat GPT. Livros, matérias de jornal, gráficos elaborados, revistas e até mesmo dublagens e vídeos não autorizados.
Em 2023, após a morte do ator Matthew Perry, famoso por interpretar o personagem Chandler Bing na aclamada série “Friends” ser encontrado morto em seu apartamento, começou a circular nas redes uma “carta de despedida” ou melhor, uma “ligação de despedida”, feita por fãs da série utilizando uma IA que simulava a voz do artista. A gravação é um desenredo emocionante de Chandler para os fãs da série e para o próprio Matthew Perry e, apesar de passar um lindo adeus àqueles que acompanharam a carreira do ator, foi feita sem o consentimento do agende ou mesmo da família do astro o que levanta um questionamento moral e ético sobre a mensagem, tanto por parte dos fãs que não tiveram respeito para com a dor da família, quanto pelas empresas de rede que permitiram que tal mensagem fosse produzida e veiculada.
Mesmo que o exemplo citado seja apenas uma referência ao uso da voz de uma pessoa conhecida, existem muitos casos em que a utilização das vozes sem a permissão do locutor pode causar danos à vida e ao trabalho do mesmo, como é o caso dos dubladores brasileiros que têm tido suas vozes clonadas e usadas sem autorização em grandes plataformas da web.
Dublagem viva
Devido o constante uso de suas vozes sem permissão, dubladores brasileiros começaram um movimento para a regulação do uso da inteligência artificial em vídeos e filmes. O esforço da classe vem não só para proteger os seus direitos, mas também para questionar a qualidade do material produzido pelas IA’s.
Mesmo com a luta dos artistas, em fevereiro deste ano a Prime Vídeo, serviço de streaming da Amazon, lançou um filme completamente dublado por uma IA, apontando o desinteresse da empresa pelo movimento. Entretanto, segundo o jornal O Globo, a dublagem gerou uma grande revolta nos assinantes do serviço devido à má tradução e a falta de cuidado por parte da multinacional.
Parte do movimento “dublagem viva” o ator e dublador Renan Alonso (33), conhecido pelas vozes de Morty Smith (Rick e Morty) e Alucard (Castlevania) criticou o posicionamento da Amazon e publicou um trecho do filme dublado por ele mesmo em seu Tiktok.
Empregos para IA’s
E, apesar atualmente afetar em massa os campos artísticos, a IA’s não se limitam eles. No início do ano passado a chefe do FMI (Fundo Monetário Internacional) Kristalina Georgieva afirmou que as inteligências artificiais podem afetar até 40% dos empregos mundiais. Ela ainda alertou um crescimento na desigualdade social e pediu para que os governos estabeleçam redes de segurança social e ofereçam programas de reciclagem para conter o impacto causado pelas IA’s.
Um estudo publicado em agosto de 2024 pela Organização Mundial do Trabalho (OIT) mostrou que 37% dos postos de trabalho brasileiros já estão expostos às IA’s generativas, o percentual equivale a 37 milhões de postos de trabalho e corresponde aos maiores números registrados na América Latina e Caribe, ficando atrás somente da Costa Rica. A pesquisa ainda indica que, no Brasil, a taxa de automação pode afetar mais as mulheres do que os homens.
É avanço, ou é só tecnológico?
O quadro parece assustador se você parar para pensar que os avanços tecnológicos podem e, provavelmente, vão substituir um grande de números de empregos atualmente feitos por pessoas. Tal fato não é novidade, afinal ao longo da história a substituição de pessoas por máquinas já aconteceu diversas vezes. Porém, na conjectura atual, não estamos falando apenas do trabalho braçal, mas do criativo, do prático e até mesmo do intelectual.
Uma tecnologia revolucionária como as IA’s que prometem grandes proporções de crescimento no PIB global, no aumento da produtividade e nas diversas outras áreas que abrangem o avanço tecnológico no mundo deveria voltar-se para a população de forma a ajudá-los a ter mais tempo para dedicar a trabalhos menos repetitivos e monótonos, dar base para a criação de novas funções e novas expectativas coorporativas, entretanto o que vemos na atualidade não é uma ferramenta que acrescenta em nada o crescimento social, cultural, patrimonial ou trabalhista das pessoas, mas sim uma ferramenta que ajuda uma grupo seleto de pessoas abastadas a não terem que gastar seu “precioso dinheiro” contratando pessoas para fazer “o que um robô pode”.
O uso da tecnologia de forma realmente democrática é uma realidade distante, pois atinge muito mais os 90% do pessoal da “classe A” que têm facilidade de entender a tecnologia do que dos 46% da população que não acessa a internet porque não sabem usá-la. Afinal, é uma questão de avanço ou de mercado?