Sumário
Há exatos dois anos, em 24 de novembro de 2023, calava-se aos 88 anos a voz de Batista Custódio – um dos maiores jornalistas da história de Goiás e um editorialista sem rival na imprensa brasileira. Combativo, atuante e brilhante, Batista construiu uma trajetória que se confunde com a própria luta pela liberdade de imprensa no Brasil. Fundador de jornais marcantes e mentor de gerações, ele se notabilizou pelo estilo incisivo e pela coragem inabalável com que desafiou censuras e poderes constituídos. “A imprensa de Goiás e do Brasil perderam... um dos mais combativos, atuantes e brilhantes comunicadores da história da imprensa nacional”, resumiu em nota oficial o presidente da Câmara Municipal de Goiânia, Romário Policarpo, ao lamentar seu falecimento. Dois anos depois, o legado de Batista Custódio permanece mais vivo do que nunca – celebrado em homenagens públicas e na memória afetiva de colegas, leitores e familiares.
Das raízes em Caiapônia ao jornalismo combativo
Nascido em 9 de abril de 1935, em Caiapônia (sudoeste de Goiás), Batista Custódio dos Santos teve a infância marcada pela vida no campo e por exemplos de coragem e independência que moldaram seu caráter. Aos 21 anos, em 1956, lançou seu primeiro pequeno jornal estudantil, A Luneta, preludiando uma vocação precoce para as letras e a denúncia. Poucos anos depois, seria protagonista de um dos eventos definidores de sua geração: em 5 de março de 1959, ao lado de outros jovens, participou dos protestos estudantis contra o aumento de tarifas em Goiânia que acabaram reprimidos violentamente pelo governo estadual. Indignado com a morte de um estudante nesse episódio, Batista uniu-se aos colegas para fundar um jornal que eternizasse a data do massacre estudantil e defendesse a liberdade. Nascia assim o semanário Cinco de Março, batizado em homenagem ao dia do protesto e lançado com o lema emblemático: “Nem Washington, nem Moscou, nem Roma: tudo pelo Brasil”. Essa frase, que estampava a primeira edição, indicava já a postura independente e nacionalista do jovem editor.
Aos 23 anos, Batista assumiu a redação do Cinco de Março disposto a incomodar a quem fosse preciso em nome da justiça. Logo o semanário ganhou fama pela postura crítica e investigativa. Dizia-se que, às segundas-feiras, “Goiânia tremia” quando o jornal começava a circular, tal o impacto de suas manchetes explosivas. Combinando jornalismo investigativo e uma agressividade ímpar, o Cinco de Março revelou escândalos de corrupção que outros meios temiam abordar. Uma de suas reportagens icônicas, por exemplo, expôs um desfalque milionário na Polícia Militar em meados da década de 1960 – provocando retaliação imediata: policiais cercaram a sede do jornal e empastelaram a redação a tiros, forçando a suspensão temporária das atividades. Nada disso deteriu o jovem Batista Custódio. Em 1964, no mesmo ano em que o semanário desafiou abertamente o regime militar recém-instalado, o Cinco de Março foi laureado com o Prêmio Esso de Jornalismo, reconhecimento nacional à coragem de suas denúncias.
Durante os anos de chumbo, Batista consolidou sua fama de jornalista destemido. Mesmo sob censura, manteve o Cinco de Março como trincheira da liberdade, denunciando abusos da ditadura e de oligarquias locais. Essa postura combativa teve custos pessoais: em 1970, foi preso pelo regime, acusado de “crime de opinião” por suas críticas – permaneceu oito meses encarcerado como preso político. Sua esposa à época, colegas, amigos fieis e admiradores lideraram uma campanha pela sua saída da prisão, até a obtenção de um habeas corpus em seu favor no Supremo Tribunal Federal.
Batista foi solto, mas as perseguições não arrefeceram sua pena afiada. O Cinco de Março driblou a censura até 1979, quando encerrou suas atividades após 20 anos de história – coincidindo com o início da abertura política no país. Coerente com seus ideais, Batista recusou-se a pedir indenização ao Estado pelos anos de perseguição sofrida; preferiu “seguir em frente” na imprensa, sem jamais transigir com a censura.
Diário da Manhã: uma nova era e gerações formadas
Com a redemocratização em curso, Batista Custódio partiu para um novo desafio. Em março de 1980, ele e antigos companheiros do Cinco de Março lançaram o “Diário da Manhã”, um jornal diário que viria a se tornar ainda mais influente quanto seu antecessor semanal. Se o Cinco de Março ficara no passado marcado pelo denuncismo e pelo embate frontal, o novo DM (como ficou conhecido) nascera para os novos tempos: um veículo moderno, pautado pela apuração factual, porém mantendo a pegada crítica que era marca de Batista.
Para montar a redação, ele contou inicialmente com talentos goianos de primeira linha e, em seguida, tratou de atrair nomes de peso do jornalismo nacional. Washington Novaes, um dos grandes jornalistas do país, foi contratado e ajudou a elevar o padrão editorial, ao lado de outros profissionais vindos de centros como Rio e São Paulo. Sob a batuta de Batista, o Diário da Manhã viveu uma época áurea nos anos 1980: chegou a repercutir nacionalmente e conquistou prêmios, como o de 3º Melhor Veículo de Comunicação do Brasil em 1984, concedido pela Academia Brasileira de Letras.
Mais do que isso, o DM transformou-se em uma verdadeira escola de jornalismo. Muitos jovens repórteres iniciaram carreira em sua redação e depois ganharam projeção nacional. Nomes como Lilian Teles (hoje repórter da TV Globo) começaram no Diário da Manhã nos anos 1980, assim como outros que se tornariam correspondentes internacionais ou destaques em grandes veículos. “Os jornais Cinco de Março e Diário da Manhã contam a história de Goiás e do Brasil nas últimas cinco décadas”, afirmou a Câmara de Goiânia em nota, lembrando que Batista formou “celeiros de talentos da comunicação goiana e brasileira” ao longo de sua jornada. Não por acaso, até hoje o DM é reverenciado por veteranos como o jornal que lapidou gerações de profissionais e manteve acesa a flama da imprensa livre em Goiás.
A trajetória do Diário da Manhã também não foi isenta de turbulências. Em meados dos anos 1980, atritos políticos e dificuldades financeiras quase fecharam o jornal – a redação vivenciou momentos de crise, especialmente após o DM comprar brigas com poderosos de plantão. A versão mais conhecida nos bastidores atribui a um confronto com o então governador Íris Rezende, em 1983, uma campanha de sufocamento econômico contra o veículo. Batista soube que anunciantes do DM passaram a ser pressionados pelo governo; alguns chegavam a pagar pelos anúncios e pedir para que não fossem publicados, temendo retaliações fiscais. O resultado foi que o DM acabou fechando temporariamente suas portas, em pelo menos duas ocasiões, devido a esses embates e às tempestades econômicas que vivenciou. Idealista, Batista nunca desistiu de reabrir o jornal. “Eu falava: ‘você é louco!’ E ele dizia que era apenas um apaixonado pelo trabalho. Ele era um workaholic!”, lembra o jornalista Carlos Medina, amigo de Custódio desde os anos 1970. A obstinação valeu a pena: Batista conseguiu retomar as atividades e seguiu à frente do Diário da Manhã nas décadas seguintes, adaptando-o aos novos tempos e, mais uma vez, fazendo dele tribuna de causas sociais e democráticas. Até os últimos meses de vida, já octogenário, Batista continuou atuante no comando do jornal, participando diariamente – ainda que por telefone, do leito hospitalar – das decisões de pauta, títulos e manchetes, “como um homem a mais no front, lutando contra fake news, governos autoritários e violências institucionais contra minorias”, conforme depoimento do atual editor Weliton Carlos.
Personalidade, ética e influência além da redação
Para colegas e amigos, Batista Custódio foi mais que um chefe de redação rigoroso: foi um mestre, um visionário e um exemplo de ética. Dono de uma inteligência prática e faro jornalístico aguçado, ele “comia e bebia jornalismo”, como definiu um de seus revisores – vivia para o trabalho e absorvia avidamente tudo ao seu redor. Seu estilo de texto era singular, descrito como barroco-jornalístico, mesclando erudição e simplicidade, mas rico num parnasianismo cuja preocupação era expor suas ideias de maneira completa com respeito estético a língua portuguesa. Em casa, Batista refugiava-se em sua vasta biblioteca, onde“polia as palavras e fazia de seu texto, de alta voltagem retórica, uma arma a favor de sua indignação”. Não raro recorria a metáforas e referências históricas em seus editoriais inflamados, defendendo suas causas com eloquência. Nunca foi um “intelectual de torre de marfim”, era leitor voraz de literatura clássica, e tinha memória fotográfica impecável. Sabia recitar grandes trechos de clássicos de cór e com tamanho arcabouço conseguia comunicar ideias complexas de forma acessível e contundente.
No convívio pessoal, Batista cativava pela generosidade e senso de justiça. “Batista amava toda a humanidade. Sentia a dor do outro profundamente”, recorda sua viúva, Marly Almeida. Religioso na essência de sua ética (espírita por convicção, ligado a valores cristãos), ele praticava a caridade discretamente e acreditava no poder transformador do amor ao próximo. Marly enfatiza que ele “falava com um amor e uma clarividência que só ele tinha”, característica que faz imensa falta no acirrado cenário político atual. Essa combinação de firmeza e empatia tornou Batista uma figura respeitada até por adversários. Colegas como Ulisses Aesse o definem como “um exemplo da democratização da imprensa no Brasil”: um jornalista íntegro, que “sempre lutou pelas liberdades de opinião e expressão” e fez de seus jornais “faróis dessa liberdade” em Goiás. Ulisses lembra que Batista sonhava com uma imprensa livre e soberana, onde as vozes do povo encontrassem eco nas redações – ideal que ele perseguiu incansavelmente ao longo de cinco décadas.
Batista Custódio também transitou com desenvoltura no meio político e cultural sem jamais abdicar de sua independência. Tinha amigos de todas as ideologias: dialogou com presidentes e governadores dos mais variados matizes, de Juscelino Kubitschek – de quem recebeu, de presente, um revólver Smith & Wesson de cabo de madrepérola – a José Sarney, a quem influenciou na concepção da Ferrovia Norte-Sul. Foi próximo de líderes goianos como Iris Rezende, Maguito Vilela, Marconi Perillo, Henrique Santillo, Alcides Rodrigues e Ronaldo Caiado. Contudo, nunca confundiu amizade com leniência: Batista aconselhava esses políticos em privado, mas não hesitava em criticá-los em público quando julgava necessário. Coerente com essa postura apartidária, recusou convites para se candidatar a cargos eletivos ou ocupar postos em governos – seu lugar, reiterava, era na imprensa e na sociedade civil, de onde poderia fiscalizar o poder com autonomia. Esse equilíbrio lhe rendeu respeito generalizado. Ao saber de sua morte, o governador Ronaldo Caiado decretou luto oficial de três dias em Goiás e enalteceu Batista Custódio como “um dos homens mais cultos e uma referência do jornalismo brasileiro, respeitado nacionalmente pelo conteúdo e preparo intelectual de suas matérias”.
A vida pessoal de Batista teve capítulos de dor, enfrentados com a mesma coragem com que ele combatia as injustiças públicas. Seu casamento com Consuelo Nasser – parceria que começara nas redações – desfez-se em meados dos anos 1980, em meio às crises do Diário da Manhã. Anos depois, Consuelo (uma destacada ativista feminista que fundou o Cevam – Centro de Valorização da Mulher) faleceu tragicamente, assim como Fábio Nasser, filho que ela e Batista tiveram juntos. Essas perdas abalaram-no profundamente, mas não quebraram seu espírito. Batista refez sua vida ao lado de Marly Almeida, com quem se casou em segundas núpcias e teve novos filhos – formando uma família grande e amorosa que ele costumava chamar de “meu maior legado”. Ele teve ao todo seis filhos consanguíneos e dois enteados que criou como seus, além de netos. Nos últimos anos de vida, já longe da rotina diária na redação por conta da saúde, Batista dedicou-se a escrever memórias e reflexões pessoais, sem nunca abandonar a esperança no futuro.
Legado vivo: homenagens e obras póstumas
Batista Custódio partiu em 2023 deixando um legado inigualável para a imprensa goiana. Dois anos depois, esse legado vem sendo reconhecido por meio de homenagens oficiais e iniciativas culturais que buscam preservar sua memória. Na Câmara Municipal de Goiânia, os vereadores instituíram a Comenda Batista Custódio, honraria anual destinada a reconhecer jornalistas que se destacam na defesa da verdade, da ética e da liberdade de imprensa – os valores que nortearam a vida do homenageado. A comenda foi criada pela Resolução nº 9/2025, assinada pelo presidente Romário Policarpo e publicada em outubro de 2025. Consiste em uma medalha dourada de 35 mm de diâmetro com o nome e as datas de nascimento e morte de Batista, ladeadas pelos dizeres “Jornalista” e “Destaque”. A honraria deverá ser entregue todo mês de novembro, na semana do dia 24, para marcar o aniversário de falecimento de Custódio – renovando anualmente sua presença na memória coletiva da cidade. A previsão é que a primeira solenidade ocorra em 2026, consolidando essa homenagem que eleva Batista Custódio ao panteão dos grandes nomes da capital.
No âmbito estadual, a Assembleia Legislativa de Goiás aprovou um tributo perene ao jornalista nas estradas goianas. Por iniciativa do deputado Bruno Peixoto, então presidente da Alego, foi votado e aprovado em dezembro de 2023 o projeto de lei nº 8809/23 que denomina “Rodovia Batista Custódio” o trecho da GO-060 entre os municípios de Santa Bárbara de Goiás e Bom Jardim de Goiás. A escolha desse trecho não é fortuita: ele liga regiões onde Batista atuou profissionalmente e simboliza a ponte entre gerações e cidades unidas pela informação. Dar seu nome a uma rodovia que ele tanto cruzou para erguer e construir a Área de Preservação Ambiental do Encantado é, portanto, um reconhecimento à sua visão de mundo e à ligação histórica que manteve com as instituições democráticas de Goiás. O projeto, porém não foi pra frente, devido a problemas estruturais e inconsistências, pois alguns trechos que seriam renomeados, já tinham nomes homenageados, segundo a Goinfra. O projeto está paralizado na Alego e não mais movimentou-se.
Outras homenagens partem de iniciativas privadas e familiares, voltadas a preservar a obra escrita de Batista Custódio para as próximas gerações. Estão em produção três livros que resumem a grandiosidade de sua contribuição: o primeiro será uma coletânea de todos os textos publicados por ele no jornal Cinco de Março, organizados em ordem cronológica. Essa reunião exaustiva – a ser dividida em vários volumes, dado o imenso acervo produzido entre 1959 e 1979 – permitirá revisitar desde os artigos pioneiros da juventude até as últimas denúncias do semanário combativo, compondo um panorama histórico de Goiás na visão de Custódio. O segundo livro trará uma seleção de artigos e editoriais do Diário da Manhã, extraídos das décadas em que ele dirigiu o diário, evidenciando a evolução de seu pensamento e seu estilo inconfundível ao longo dos anos. Por fim, o terceiro projeto editorial – talvez o mais pessoal – é a edição de sua autobiografia inédita, intitulada “Saga Sonho”. Batista trabalhou por anos nessa obra memorialística, redigindo cerca de 8 mil laudas manuscritas, mas não chegou a publicá-la em vida.
Agora, familiares e admiradores empenham-se em transcrever e editar esse material, que deverá revelar o relato íntimo de sua saga, desde as origens humildes em Caiapônia até o topo do jornalismo goiano, incluindo reflexões espirituais e filosóficas do autor. Além disso, o grupo responsável planeja publicar em livro algumas cartas e mensagens psicografadas recebidas por Batista – ele, que era espírita, frequentemente buscava conforto na espiritualidade – organizando-as cronologicamente como complemento à autobiografia.
Com essas publicações, previstas para os próximos anos, a vastíssima obra de Batista Custódio será acessível às novas gerações, perpetuando suas ideias, denúncias, crônicas e sonhos em formato de papel e digital. “Batista Custódio está vivíssimo e estará para sempre”, escreveu Arthur da Paz, jornalista e discípulo do mestre, ao anunciar esses projetos. De fato, cada página recuperada reascende a chama do jornalismo combativo e humanista que ele praticou, lembrando-nos de suas lutas hercúleas em favor da verdade e da justiça.
Dois anos após sua morte, Batista Custódio permanece presente no imaginário de Goiás como símbolo de integridade e paixão pelo jornalismo. Seu nome batiza comendas e estradas, suas palavras ecoam em livros e na memória de quem o leu ou com ele conviveu. Seu jornal, o Diário da Manhã, segue em atividade – hoje presidido por seu filho adotivo Júlio Nasser – mantendo viva a tocha da liberdade de expressão que ele acendeu em 1959. Em suma, Batista deixou um legado multifacetado: foi fundador de dois veículos históricos, formador de profissionais brilhantes, defensor incansável da liberdade e porta-voz dos oprimidos.
Seu exemplo atravessa o tempo. Como relembra sua esposa Marly, Batista“deixou um vazio imenso neste momento político”, pela falta que faz alguém com sua combinação única de amor ao próximo e visão clarividente. Mas, por outro lado, deixou também um farol. E talvez nenhuma frase o defina melhor que aquela que ele próprio gostava de repetir diante das adversidades: “Cabisbaixarmos? Jamais!”. Com a cabeça erguida e o coração inflamado de ideais, Batista Custódio venceu o mundo e mudou a imprensa goiana – e é assim, de cabeça erguida, que sua memória seguirá inspirando as próximas gerações de jornalistas.