Sumário

Por mais todo-poderoso que seja, Deus criou um mundo e uma humanidade cheios de falhas, destinados à entropia e ao desaparecimento. Ou Ele não se empenhou, ou estava cansado, ou fez de propósito e “seus desígnios são insondáveis”. O Criador é perfeito; ora, o mundo não é; logo, Deus não existe — podem argumentar os mais céticos (há, no mínimo, uma incompatibilidade séria). Leibniz diria que, mesmo imperfeito, este é “o melhor dos mundos possíveis”, então Deus pode muito bem existir.
Mas dá para resolver a contradição de outro modo: o Criador é perfeito; ora, o mundo não é; logo… o mundo não é obra do Criador. A nossa realidade de fato foi criada, mas por um sub-deus, um subordinado, um ersatz — um Iznogoud que fracassa em igualar ou suplantar seu superior. Sobretudo um Gaston Lagaffe, um faz-tudo desajeitado. É engano tomá-lo por Deus. Encontramos variações desse enredo em várias mitologias. No banco dos réus: o “demiurgo*”.
Demiurgo
O termo “demiurgo” vem do grego antigo δημιουργός (dēmiourgós), formado por:
• dēmos (δῆμος) = “o povo”
• ergon (ἔργον) = “trabalho, obra”
Literalmente: “operário público”, artesão do povo, aquele que trabalha para a coletividade.
Em Platão, o demiurgo vira muito mais que um simples artesão: é uma entidade divina (ou quase), uma espécie de modelador do universo, sem rivalizar com o Deus onipotente dos monoteísmos. Antes um arquiteto cósmico, um tanto meticuloso, um tanto maníaco, que molda o mundo a partir de um caos preexistente… tentando copiar o Bem. Nada fácil…
O demiurgo, um deusinho que faz o que pode
Ora copia ideias, ora faz nas coxas, improvisa, teima: um demiurgo, muitas vezes, não sabe o que está fazendo. Cria como quem monta um móvel sem manual: com o que tem à mão, um pouco de fé e muitos erros. Não é a sabedoria que guia seu ato criador, mas o orgulho, a distração ou, às vezes, só o tédio. A burrice aqui não é falta de inteligência, mas, no melhor dos casos, a trapalhada; no pior, a incapacidade de prever as consequências dos próprios gestos. O mundo é como um rascunho; vivemos num primeiro jato. E, às vezes, o criadorzinho grita “obra-prima” e exige toda a nossa veneração.
Assim, entre os chineses, Pangu separa Céu e Terra crescendo por milênios e morre de exaustão. Seu corpo vira o mundo. Ele cria sem querer, por esforço bruto e por queda. Entre os antigos indianos, Prajapati, em algumas versões, tenta criar imitando o ritual cósmico. Hesita, recomeça, se fragmenta. A criação avança por tentativas, sacrifícios e descaminhos. Em Platão, o demiurgo surge no Timeu. Não é um deus criador propriamente dito, mas quem põe ordem no caos a partir das ideias perfeitas do mundo das formas. Esforça-se para fabricar um mundo correto, conforme uma ideia de ordem. Quer imitar a perfeição, mas só pode fracassar.
O demiurgo leva sobretudo bordoada entre os gnósticos, místicos espalhados em diversos movimentos contemporâneos aos primeiros cristãos. Em uma de suas representações mais sombrias, ele é Yaldabaoth, uma entidade saída do Pléroma, o mundo superior, ignorante da verdadeira natureza do Deus transcendente. Tomado por hýbris — uma vaidade funda que o faz esquecer seu lugar — proclama-se o único Deus e cria um mundo material imperfeito, fonte de sofrimento e ilusão. Sua criação é um ato de burrice cósmica, fruto de sua incapacidade de compreender a própria posição e a verdadeira natureza do divino. O mundo que ele modela não passa de uma prisão enganosa, que aprisiona na matéria as centelhas divinas que todos somos. O demiurgo é claramente um impostor, uma divindade de segunda linha, quase malévola, que fabricou o mundo material (imperfeito, por vezes podre até o osso) posando de Deus. Um delírio cósmico. É a encarnação de um poder mal alocado. E sua criação vira instrumento de controle: reina sobre um reino de fracassos achando que é glorioso. É ao mesmo tempo responsável pelo próprio erro e superado por ele. A resposta gnóstica? Desertar. Despertar. Transgredir. Não alimentar a máquina.
“O demiurgo se leva a sério; o trickster se delicia com o caos e o absurdo.”
O trickster, desafio travesso à ordem das coisas
O demiurgo, criador malogrado de vontade torta, não é a única figura mitológica supraterrena que interessa à “connologie” (a ciência da burrice). O trickster¹ — espécie de Coringa sobrenatural, tão brincalhão quanto perverso — impõe-se como entidade ainda mais ambígua.
Trickster
O termo inglês “trickster” vem de trick — truque, artimanha, embuste. Surge já em 1711 para designar um trapaceiro, um vigarista. Só mais tarde se aplica a figuras mitológicas. Segundo certas fontes ainda debatidas, Albert Lacombe, em 1878, o usa para descrever Wesucechak, personagem mítico dos Cree, traduzindo como “the trickster, the deceiver”.
O termo se impôs nos estudos etnológicos para agrupar personagens transgressivos presentes nas mitologias do mundo inteiro. Em 1958, Paul Radin, Charles Kérényi e Carl Gustav Jung falam do mito do “fripão divino”. Já entre antropólogos franceses, prefere-se muitas vezes “deceptor”.
Ele aparece, de um jeito ou de outro, em muitíssimas culturas. Muitas vezes é um animal antropomórfico, às vezes um deus secundário ora desastrado, ora velhaco: Coiote, em numerosas mitologias ameríndias (navajo, sioux, hopi), é um criador ao mesmo tempo perturbado, libidinoso, preguiçoso e esperto; na Escandinávia, Loki muda de forma e de sexo, provoca o caos e o confronto dos deuses; Lebre, entre os Winnebago (sioux) e outras tribos, age como um herói grotesco, autocentrado, metamórfico e comedor de fezes; Nanabush, nas tradições ojíbua (América do Norte), é ora trapaceiro, ora herói, demônio e idiota; na África Ocidental, Anansi, a aranha, mente, trama, põe uns contra os outros, às vezes em prejuízo dos próprios filhos. E por aí vai… A constante chama a atenção: o trickster sempre espezinha as regras dos outros — e raramente por uma causa. Age por inveja, desafio, prazer ou mesmo tédio.
Psicólogo fino e bom de lábia, adora tomar os outros por tolos: a Lebre dos Winnebago obriga os demais animais a acreditar em absurdos, e ri ao vê-los obedecer; Corvo faz crer que criou a luz quando apenas a roubou de um cofre; Anansi conta que capturou o Sol, a Chuva e a Morte e ganha glória e respeito com puras balelas. Hermes, o Mercúrio dos romanos, compartilha muitos traços do trickster: deus dos ladrões, dos comerciantes e dos mensageiros, é astuto, veloz e gosta de pregar peças em deuses e humanos. O trickster prospera na nossa credulidade. Explora nosso gosto por explicações simples, nosso medo da dúvida, nossa necessidade de líderes. Muitas vezes, ele nem tenta nos convencer: deixa que nos armemos a própria armadilha.
O trickster sabota, joga, engana, vira tudo do avesso. Suas qualidades de criador são discutíveis: às vezes, como Coiote ou Corvo, teria engendrado o mundo e os humanos; às vezes, quando cria, é na margem — fragmentos de paisagem, por exemplo. Amoral e pouco ligando para ser adorado, diverte-se com nossa fome de sentido e às vezes nos revela que só acreditamos no que queríamos acreditar. Ao zombar dos tabus, nos força a pensar se fazem sentido. Ao brincar com os códigos, desnuda a rigidez das estruturas sociais. Ainda assim, não busca nos dar lição nem nos melhorar. Enquanto o demiurgo se leva a sério, o trickster se delicia com o caos e o absurdo. Ele não tem mensagem. Age gratuitamente, e as consequências falam por ele. Se a hýbris demiúrgica alerta para os perigos de um poder criador sem humildade e sabedoria, o espírito trickster lembra o papel subversivo — e às vezes necessário — da desordem, da ironia e da revisão das normas. O que fazer com tudo isso? Aceitar que a criação não é um ato puro. Ela é atravessada de hesitações, falhas e fracassos. Os demiurgos são deuses cansados, incompetentes, ausentes ou apenas ultrapassados. Os tricksters são reveladores que cutucam onde é frágil — e vibram quando o verniz racha. Ambos encarnam, a seu modo, uma forma de burrice: a que produz sem querer e a que destrói rindo. E nós, pobres humanos plantados no meio, tentamos sobreviver nesse teatro semi-desabado, tomando nota.
E Satanás no meio disso tudo?
A serpente bíblica — a que levou o primeiro casal a morder a maçã não por “cabriolas sexuais”, como se crê às vezes, mas para conhecer a diferença entre o Bem e o Mal, à semelhança de Deus — é um trickster? Primeiro, notemos que a serpente é figura recorrente nos relatos mais antigos ao redor do mundo. Na Mesopotâmia, simbolizava a astúcia e o poder. No Egito, a serpente Uto, deusa-naja, era aliada dos faraós. Em toda a Ásia do Sudeste, veneram-se serpentes cósmicas gigantes, os Naga, criadores da chuva e guardiões de tesouros ocultos. Na África, surgem figuras ofidianas nos reinos do Daomé ou entre os Éwê. Ela ocupa, então, posição central — raramente sem desconfiança. A serpente não é franca. É ambígua, escorregadia… Na Bíblia, fala. É um dos raros animais falantes — e isso não é à toa: ela sabe. Aliás, em vários contos europeus, há serpentes dotadas de fala secreta, portadoras de uma “linguagem dos animais” que só heróis suficientemente espertos compreendem. Cassandra, Melampo, Tirésias… todos entendem os mistérios do mundo depois de lidar com serpentes. Não por acaso, portanto, a serpente tem papel fundamental nos mitos de iniciação e transgressão. Na Grécia, é muitas vezes guardiã de lugares interditos ou guia para outro mundo. Mas por que age assim? Nada ganha diretamente. Não é um deus vingativo nem um demônio ciumento; joga com a pusilanimidade humana. Empurra ao erro, à falha, à queda… e, paradoxalmente, é gatilho de progresso.
O “satã” original, no Antigo Testamento, ainda não é um demônio. É um emissário divino, membro da corte celestial, cumprindo seu papel como um promotor sarcástico — um acusador dos homens. No Livro de Jó, é um agente do tribunal divino que pede a Deus permissão para arruinar um justo e verificar se ele permanece fiel ao Criador na adversidade. De caráter desagradável, não é explicitamente mau por essência. E crê sinceramente em sua missão. Com o exílio na Babilônia e, depois, sob a influência do pensamento iraniano (com Angra Mainyu, entidade demoníaca oposta a Ahura Mazda no zoroastrismo), Satanás se escurece. Individualiza-se, torna-se anjo caído e, em seguida, um deus dos infernos, chefe dos demônios, encarnação do Mal. Herda traços de Pã, de Hades e até de certas figuras pagãs: já não é o adversário pontual, é o adversário eterno. Agora acusa o próprio Deus. E, no cristianismo, vira o pai da mentira, o divisor, o tentador.
O paralelo com a serpente do Jardim do Éden se impõe. Alguns textos rabínicos chegam a aproximá-los até confundí-los: nesse caso, a serpente é Satanás disfarçado. Ou melhor: é Satanás quando ainda é “engraçado”. Mas, no texto, a serpente não tem nome. Em todo caso, é no jardim que a serpente — seja ou não Satanás — brilha como trickster puro: não impõe nada, apenas sugere. Não viola o interdito, torna-o ridículo. É um desregulador. A serpente não acredita no nosso valor moral, e Satanás não acredita na nossa constância. Eles testam. Armam. Anotam nossas reações.
Então, o que são, no fundo? Talvez antropólogos cruéis. Experimentadores. Espíritos brilhantes, lógicos, frios, metódicos. Uns canalhas? Digamos: se tomarmos “canalha” como um ser inteligente, manipulador, sem empatia e guiado apenas por seus interesses — ou por um jogo cínico —, dá vontade de cruzar essa linha. Tricksters mais sombrios, mais cínicos do que clownescos, a serpente e Satanás também merecem lugar no panteão da burrice — não por serem vítimas dela, mas por nos revelarem a nossa.
Fontes
• Patrick Jean-Baptiste (org.), Dictionnaire universel des dieux, déesses, démons, Seuil, 2016.
• Jean-Loïc Le Quellec e Bernard Sergent, Dictionnaire critique de mythologie, CNRS, 2017.
¹ Neste texto, mantenho trickster em inglês por ser termo consagrado nas ciências humanas; quando cabível, uso explicações contextuais (trapaceiro, deceptor, fripão divino).