Em 2010, a obra de Sigmund Freud entrou em domínio público. Muito se adensou, daí em diante, acerca das discussões referentes às traduções de seus textos, e grandes trabalhos começaram a ser executados nesse sentido; como a Revised Standard Edition (Edição Padrão Revisada), na Inglaterra, e as novas traduções brasileiras, como as realizadas pelas editoras Companhia das Letras e Autêntica.
Em todo caso, este texto não pretende falar dos significativos méritos de tais esforços ou das questões conceituais, quanto à terminologia e estilística de Freud, e como esses aspectos poderiam ser vistos em eventuais feituras de diferentes versões idiomáticas de seu trabalho monumental. Trata-se aqui de questionar; se, nesse quesito, muitas vezes se diz que o psicanalista é um tradutor do que o paciente diz, ou que também haveria algum tipo de tradução que se realiza na clínica psicanalítica; do que se trataria este termo técnico - "tradução" - para o âmbito da práxis freudiana?
A observação que Freud faz acerca desse aspecto, é importante destacar, não estabelece que alguém por verter um texto de um idioma para outro seja psicanalista, ou que o trabalho do analista seja como o de alguém que encontra possíveis equivalências de vocábulos entre dois ou mais idiomas. Fala-se antes de uma decifração a partir de um
discurso apresentado, uma narrativa de sonho, por exemplo. É possível ressaltar que as interpretações tecidas por
psicanalistas configuram, mais a rigor, traduções de um método estranho de expressão para outro que nos soa familiar.
Quando se interpreta um sonho, somente traduz-se certo conteúdo de pensamento – os chamados
pensamentos oníricos latentes – da maneira que se apresentam nos sonhos, para nosso modo de falar em vigília. Tal analogia entre tradução (Übersetzung) e interpretação (Deutung) de sonhos (Traumdeutung) aparece com ampla frequência ao longo de toda a obra freudiana. Na verdade, a tais vocábulos e noções, somam-se outros que são utilizados por Freud de modo que, em geral, se mostra intercambiável, como no exemplo
de Übertragung, que aponta tanto para “transferência” quanto “tradução”. Essa visada freudiana de fala e de escrita, da linguagem de forma geral, do "simbólico", enfim, que rompe com a imaginária
transparência das línguas, e o imaginário controle do sujeito sobre o que fala, está necessariamente implicada no rompimento a psicanálise com a chamada ciência oficial.
Essa extrusão, digamos assim, quanto à ciência racionalista e idealista, apesar das ambições científicas de Freud que podem ser vislumbradas ao longo de seu labor, acontece conforme a psicanálise é erguida como um verdadeiro sistema de noções e conjecturas que subvertem as tradicionais ou hegemônicas concepções sobre o sujeito: de linguagem, cultura, e toda uma gama conceitual que com as mesmas se formula.
Destarte, a visão de Freud sobre tradução, também, é conceitual e
epistemologicamente original. Nessas vias, para nosso objetivo, cabe observar que o conceito do qual Freud se utiliza, ao falar de tradução, em diferentes textos, como A interpretação dos sonhos, seu famoso caso clínico sobre o Homem dos Ratos, ou o ensaio O interesse científico da psicanálise, liga-se ao vocábulo germânico Übersetzung, que pode dialogar ainda com Deutung, usado no senso de interpretação. O sentido do primeiro aparece mais como de tradução mesmo, e apresenta, em Freud, no entanto, o senso de decifração ou, talvez mais especificamente, decodificação simbólica. Em especial quanto às imagens do sonho.
Parece, porquanto, que fazer uma Deutung, para Freud, é realizar várias Übersetzungen; “traduzir” cada imagem onírica e, com essas decifracões, criar um conjunto de entendimentos que se juntam de forma inteligível, tornando-se assim capaz de transpor a linguagem estranha, por exemplo, do sonho, ao vir para a linguagem que nos é familiar, e criar uma narrativa compreensível; mais coerente sobre ele e seu sentido geral.
Esta tradução freudiana pode se dar, como vemos ao longo de sua textualidade, quanto a outras formações do inconsciente (atos falhos, chistes, sintomas...). Mas o sonho é seu referencial mais forte, cuja tradução sempre tende a guiar Freud, como ele destaca, por exemplo, no famoso caso do Homem dos Ratos: “Só então foi possível entender o inexplicável
processo ocorrido na formação de sua ideia obsessiva; com a ajuda das teorias sexuais infantis e do simbolismo que se conhece a partir da interpretação de sonhos, tudo pôde ser traduzido significativamente”.
Por conseguinte, trabalhar com a decifração da narrativa do sonho, que acontece mediante as palavras faladas pelo paciente para descrever sua(s) experiência(s) onírica(s), em psicanálise, como vemos em O sentido antitético das palavras primitivas, alinha-se com trabalhar com a linguagem: escutar o sonho, decifrá-lo assim, para Freud, significa decodificá-lo em suas imagens, mas ao passo em que as mesmas aparecem no discurso do paciente na sessão analítica. “E a nós, psiquiatras, impõe-se de modo imperioso a suspeita de que entenderíamos melhor e traduziríamos mais facilmente a linguagem dos sonhos se conhecêssemos mais a evolução da linguagem”; propõe o mestre vienense.