Sumário
Calor extremo amplia desigualdades e altera o funcionamento do cérebro, apontam estudos divulgados durante a COP-30
Durante a COP-30, realizada em Belém, novos estudos climáticos e de neurociência alertaram para um fenômeno que já se manifesta diariamente nas cidades brasileiras: a desigualdade térmica, em que moradores de periferias enfrentam temperaturas mais altas, menor ventilação e maior risco biológico do que os habitantes de bairros nobres. Pesquisas recentes indicam que o calor extremo não apenas agrava problemas sociais e de saúde — ele também afeta o funcionamento do cérebro, alterando sono, memória, humor e capacidade de decisão, especialmente entre populações vulneráveis.
Periferias brasileiras enfrentam mais calor que áreas ricas
Levantamentos apresentados na conferência mostram que moradores de baixa renda, geralmente não brancos e concentrados em zonas informais ou densamente urbanizadas, estão mais expostos a ilhas de calor que podem ser até 5 °C mais quentes do que regiões nobres. Estudos nacionais apontam que o padrão se repete em diversas cidades — de Recife a Belo Horizonte — onde a falta de vegetação, o asfalto escuro e a verticalização desordenada criam “fornos urbanos” (fonte: plataforma Environmental and Urbanization, 2024).
A desigualdade térmica tem origem histórica. Décadas de políticas urbanas empurraram populações pobres para áreas de baixa ventilação, encostas, fundos de vale, terrenos sem arborização ou próximos a indústrias e lixões. Ao mesmo tempo, bairros centrais receberam estrutura planejada, sombreamento natural e maior circulação de ar — fatores determinantes para o conforto térmico.
Impactos no corpo: do sono às internações por superaquecimento
O calor extremo já provoca aumento de internações por desidratação, exaustão térmica e complicações cardiovasculares em diversas regiões do país. Em ondas de calor prolongadas, hospitais registram elevação significativa nos atendimentos, segundo análises publicadas na Revista Pan-Americana de Saúde Pública.
Outro efeito silencioso e contínuo é a ruptura do ciclo do sono. Em moradias sem isolamento térmico, ventilação adequada ou acesso a ar-condicionado, as temperaturas noturnas permanecem elevadas, impedindo a regulação térmica do corpo e prejudicando o descanso. A Organização Meteorológica Mundial afirmou, em relatório especial distribuído na COP-30, que noites quentes se tornaram um dos principais vetores de risco climático para populações vulneráveis.
Efeitos no cérebro: memória, atenção e autocontrole sob pressão térmica
Pesquisas de universidades norte-americanas e europeias, também citadas na conferência, revelam que a exposição constante ao calor altera o funcionamento cerebral. Estudos de neuroimagem mostram queda na perfusão sanguínea em regiões corticais e aumento da temperatura intracraniana durante episódios de hipertermia (fonte: PubMed, 2023).
Um dos trabalhos mais citados na COP-30 acompanhou jovens universitários dormindo em dormitórios com e sem ar-condicionado durante uma onda de calor. Na manhã seguinte, aqueles que dormiram em ambientes quentes apresentaram tempo de reação 13% maior e queda de quase 10% no desempenho cognitivo, especialmente em testes de atenção e memória operacional (fonte: PLOS Medicine, 2018).
Além disso, níveis elevados e contínuos de cortisol — o hormônio do estresse — foram detectados entre moradores de bairros periféricos durante semanas de calor extremo, o que pode amplificar irritabilidade, impulsividade e dificuldade de tomada de decisão.
Repercussões sociais: educação, trabalho e violência
O impacto cognitivo do calor tem efeitos diretos na vida cotidiana. Escolas públicas em prédios antigos e sem climatização enfrentam queda de rendimento dos alunos (fonte: Heatwaves worsen educational inequality in Brazil, 2024). Em ambientes de trabalho informal ou externo, o calor aumenta acidentes, exaustão e queda de produtividade.
Há ainda dados que sugerem crescimento de episódios violentos em dias muito quentes — relação já investigada em grandes metrópoles e mencionada em estudos brasileiros recentes que analisam variações de humor e comportamento diante do estresse térmico.
O Brasil como laboratório climático involuntário
Com cidades mal planejadas e infraestrutura desigual, o Brasil tem sido visto por pesquisadores internacionais como um “laboratório climático involuntário”. Segundo especialistas presentes na COP-30, o país reúne condições ideais para observar, em escala urbana, o impacto combinado de desigualdade, urbanização precária e aquecimento global.
A diferença é que, nesse laboratório, milhões de pessoas são as cobaias: habitantes de bairros populares que experimentam níveis extremos de calor sem acesso a mitigação, enquanto outros grupos sociais controlam o termostato.
Soluções emergenciais e estruturais
A conferência destacou estratégias essenciais para reduzir a desigualdade térmica:
- Infraestrutura verde: plantio massivo de árvores, parques lineares, telhados e fachadas vegetadas.
- Requalificação urbana: substituição de superfícies escuras por materiais de alto albedo, ampliação da ventilação natural e reformas em unidades habitacionais.
- Transporte e educação: climatização de escolas públicas e ônibus que atendem periferias.
- Mapeamento climático local: instalação de sensores em áreas vulneráveis para orientar intervenções.
- Planos de ação para ondas de calor, com prioridade para idosos, crianças, trabalhadores expostos e moradores de casas inadequadas.
As discussões da COP-30 reforçaram que o calor extremo não é apenas um fenômeno meteorológico, mas um vetor de desigualdade social e biológica. Se não forem feitas intervenções estruturais, cidades brasileiras continuarão a reproduzir um padrão em que o endereço de uma pessoa determina o quanto o cérebro pode funcionar plenamente em dias quentes.
Justiça climática, concluíram especialistas, não será apenas reduzir emissões globais — mas garantir que nenhum brasileiro sofra mais calor por causa da cor da pele, da renda ou do bairro onde nasceu.

Embora focamos nesta reportagem no calor extremo, as discussões lembram que a temperatura é apenas uma das faces da injustiça climática no Brasil. Milhões de pessoas enfrentam outros riscos ambientais graves: famílias que vivem em áreas sujeitas a alagamentos crônicos, onde enchentes frequentes destroem casas e interrompem a rotina; comunidades instaladas em regiões de seca permanente, onde a escassez de água compromete saúde, trabalho e alimentação; e moradores de encostas e barrancos que convivem diariamente com o risco de deslizamentos provocados por chuvas intensas e solo instável. A soma dessas vulnerabilidades — calor extremo, enchentes, secas e desmoronamentos — mostra que os impactos climáticos não se distribuem de forma igual e atingem de maneira desproporcional quem tem menos recursos para se proteger.
Transcrição do vídeo do biólogo Paulo Jubilot:
Desigualdade Climática — Como o calor reescreve seu cérebro
No verão, enquanto a classe média alta e os ricos estão postando foto na praia, tem pobre desmaiando de calor no ônibus. Essa é a injustiça climática brasileira. Eu queria que você soubesse o que as pesquisas mostram. Quanto mais pobre a pessoa for, mais ela vai sofrer os efeitos do calor. Isso nada mais é do que resultado de décadas e décadas de planejamento urbano que empurrou os mais pobres para vales sem ventilação, áreas sem árvores, perto de fábricas e lixões.
Enquanto os bairros nobres foram pensados para o frescor, as periferias — hã — elas viraram fornos. Hoje, milhões de brasileiros vivem nas chamadas ilhas de calor urbanas, que são regiões até 5 °C mais quentes que os outros bairros. Ou seja, quem menos pode pagar por ar-condicionado é exatamente quem mora onde mais precisa dele. O rico chama de verão o que o pobre chama de insônia.
Os cientistas já descobriram que os moradores de periferias que ficam expostos ao calor, além de sofrerem com a falta de sono de qualidade, têm níveis muito altos de cortisol, que é um hormônio essencial para a vida. Só que o problema acontece quando esse hormônio fica cronicamente alto. A cada onda de calor, o cortisol fica cada vez mais alto e aí fica muito difícil pra pessoa manter o autocontrole. É exatamente por isso que, nesses momentos, as pessoas tendem a ficar mais impulsivas, mais irritadas e muito menos produtivas.
E assim, existem dados que comprovam isso. Depois de várias noites de calor extremo, nas periferias aumentam as internações por superaquecimento do corpo e também relatos de episódios violentos. Cada grau a mais no termômetro tende a esquentar também os ânimos nas ruas.
O Brasil acabou se tornando um laboratório onde se testa quanto calor o cérebro humano aguenta. A diferença é que uns são cobaias e outros controlam o termostato. Enquanto o mundo todo fica discutindo metas de temperatura, neste momento milhões de pessoas já sentem o aquecimento global na própria pele. Isso não é só um problema social, é biologia da desigualdade.