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INFLUÊNCIA INTELIGENTE TODO DIA

Ciência Política da Burrice: A estupidez para principiantes

Afinal, por quê? A burrice chacoalha nossas vidas e nossas sociedades dia após dia — e as ciências humanas iriam se negar a encará-la de frente? Já passou da hora de corrigir essa negligência. Por Jean-François Marmion

© Coll personnelle

Explorar um objeto tão escorregadio e multiforme quanto a burrice é se condenar a soar grosseiro — no sentido mesmo de mal-educado… ou qualquer coisa assim. Qual metodologia adotar para formular e testar hipóteses? Como montar as coortes de idiotas para acompanhar ao longo do tempo, comparando-as a grupos de controle? E quem, aliás, ousaria se dizer suficientemente imune ao fenômeno para conduzir a pesquisa? Se as ciências naturais rapidamente colidiriam-se num beco sem saída, as ciências humanas, ao contrário, têm muito a dizer: psicólogos, sociólogos, filósofos, historiadores, cientistas políticos, linguistas e congêneres têm legitimidade para desbastar o terreno da burrice como der — seu crescimento individual e coletivo, suas origens, suas consequências e o modo como a representamos.

Cerca de cem pesquisadores reunidos pela editora francesa Sciences Humaines se arriscaram ao exercício em obras coletivas: Psychologie de la connerie (2018), Histoire universelle de la connerie (2019), Psychologie de la connerie en politique(2020) e Psychologie de la connerie en amour (2023). Para quem perdeu o começo, segue um resumo.

Eles, os burros, estão por toda parte!

Primeira constatação, irrefutável: por terem uma “geometria variável”, um idiota ou uma idiota, é algo difícil de definir. Não existe o “idiota-padrão” universalmente reconhecido. O idiota é questão de ponto de vista subjetivo: cada um tem o seu. O idiota dos meus amigos nem sempre é o meu. Ele pode estar próximo (às vezes reinando em nossa própria família) ou distante (um irresponsável no poder). Mesmo Donald Trump, que muitos “idiotólogos” consideram um idiota, tem seus defensores, e nada garante que, afinal, os verdadeiros idiotas não sejam seus zelotes. O idiota é múltiplo, mas, de qualquer forma que o peguemos ou que ele nos segure, ele nos prejudica, estraga nosso momento presente ou toda a nossa existência, nos impede, nos sufoca, nos sobrecarrega, nos persegue ou nos ignora. Reconhecemos o idiota pelo fato de que a vida seria tão bela sem ele. Se ele não existisse, poderíamos nos reinventar.

A estupidez se ramifica, segundo, notadamente, Pascal Engel, diretor de estudos na EHESS: a tolice (ou déficit de aptidão intelectual) não é a sandice (fatuidade ou pretensão), e muito menos a debilidade, a imbecilidade ou a idiotice (todas as três oriundas do jargão médico do século XIX para designar um atraso mental).

O idiota nem sempre é inculto, ele às vezes tem formação: é possível ter saído de Saint-Cyr ou da “coxa de Júpiter” e se comportar como um pedante ou um grosseirão, revelar-se brilhantíssimo em uma área e embaraçoso em outra por ignorância, arrogância ou inabilidade.

O eclipse da razão pela emoção não torna alguém idiota, já que ambas são tão complementares quanto indispensáveis para enfrentar uma situação de incerteza, de acordo com os neurocientistas António Damásio, da Universidade da Carolina do Sul, e George Marcus, professor emérito de ciência política em Williamstown.

Raciocinar sem nenhuma emoção? Contra todas as expectativas, isso é agir como um idiota.

Os famosos vieses cognitivos são parte de todos nós: esses erros de lógica e outros atalhos automáticos do pensamento estão no cerne de muitos estudos sobre a estupidez do Homo autoproclamado sapiens, a começar pelos de Daniel Kahneman, professor emérito de psicologia em Princeton. Nós os colecionamos, do viés de confirmação (reter apenas o que reforça nossa opinião) ao viés da negatividade (deixar o que nos incomoda ofuscar todo o resto), passando pelo viés da autoconveniência (encontrar desculpas para nós mesmos) ou pelas ilusões de causalidade (entre fenômenos concomitantes, mas independentes).

“A pior burrice é a de se achar inteligente.”
— Jean-Claude Carrière

Eles são úteis para decidir o que fazer no dia a dia sem dor de cabeça; portanto, são altamente adaptativos, herança da evolução — e nem sempre tão burros assim. Até porque o que caracteriza a burrice não é tanto o erro de avaliação (errare humanum est, claro), mas a persistência satisfeita — e agressiva — no erro (perseverare diabolicum, ora pois), chegando à radicalização e à violência, observa Philippe Braud, professor emérito do IEP-Paris. É também o juízo lapidar sem saber — nem se importar em saber —, já apontavam os enciclopedistas, lembra Martine Groult, pesquisadora honorária em filosofia no CNRS. “A pior burrice é a de se achar inteligente”, sentencia o escritor Jean-Claude Carrière. E, sobretudo, infalível… Julgamentos binários, categóricos e definitivos preparam o terreno da burrice — daí o perigo, por exemplo, de ler a crise dos Coletes Amarelos como uma guerra de trincheiras entre uma elite olímpica e um bando de patetas, lembra Pascal Perrineau, professor emérito do IEP-Paris.

💡
Vale lembrar
Os Coletes Amarelos (Gilets Jaunes, em francês) foram um movimento social e político de protesto que surgiu na França em outubro de 2018, inicialmente contra o aumento do preço dos combustíveis e a criação de uma nova taxa ecológica sobre o diesel.

A burrice decididamente não é o contrário de volume de massa cinzenta, quantidade de razão ou arcabouço de cultura. Um tal Albert Einstein — a quem dificilmente se poderia acusar de burrice, salvo talvez na vida privada — distinguia a inteligência, que resolve problemas, da sabedoria, que evita que eles surjam… O idiota talvez seja o avatar contemporâneo do “louco” de outrora: antes que o termo fosse apropriado pela psiquiatria, ele designava o negativo do sábio — aquele que evita encrencas para si e para os outros. A burrice permanece como ruído de fundo da própria sabedoria, brinca Tobie Nathan, professor emérito de psicologia na Universidade Paris 8.

A burrice ao longo dos séculos

O Neolítico aparece, aos olhos de vários autores — como Marylène Patou-Mathis e Jean-Paul Demoule, respectivamente diretora de pesquisa do CNRS e professor emérito de arqueologia na Universidade Paris 1 —, como a ladeira escorregadia em que a burrice tomou impulso decisivo. Sedentarização, criação de animais e agricultura parecem saltos gigantes na trajetória humana, mas não sem efeitos colaterais: entre eles, o armazenamento e a distribuição de víveres supérfluos por chefes com autoridade reforçada; jornadas muito mais longas do que exigia o mínimo vital; e, sobretudo, a explosão de desigualdades e, a reboque, de violências até então raríssimas, segundo a arqueologia. As “Vênus” esculpidas e a arte rupestre voltada a figuras animais cedem lugar à produção exponencial de armas de guerra ou de aparato e a representações de grupos armados em conflito. Sem contar que já não se “serve” da natureza: explora-se a natureza — pecado original aos olhos de hoje.

Desde a Antiguidade grega, relata Aurélie Damet, professora de história na Universidade Paris 1, a hybris — desmedida, arrogância — é vista como um dos ingredientes campeões da burrice, tanto entre os grandes deste mundo (que, ontem como hoje, se tomam por deuses) quanto entre os pequenos (que acham que dominam a roda cambaleante do destino e acabam esmagados por ela — concepção que a sabedoria medieval prolonga, como recorda Jean-Patrice Boudet, professor de história medieval em Orléans). A hybris empurra a desprezar, ignorar, assediar, submeter, espoliar ou massacrar aqueles que nos parecem figurantes distantes de nossa grandiosa história pessoal ou coletiva — indignos de serem compreendidos ou considerados nossos iguais.

O poder produz idiotas?

Essas análises convidam a ligar a burrice, mais ainda do que ao orgulho, à conquista ou ao exercício do poder — quase sempre masculino e acompanhado por uma injeção inebriante de testosterona, disseca o psiquiatra Patrick Lemoine, e de dopamina, envolvida em adições, lembra Emmanuel Pinto, professor associado na Faculdade de Medicina de Liège. Na empresa como na política, o poder produz idiotas, embrutece a boa-cabeça de quem a ele se encosta? Ou atrai, antes, excitados já meio destrambelhados? Não é fácil bater o martelo, mas o poder parece mesmo desinibir, agravar e “idiotizar” traços prévios da personalidade. E dá a impressão de que os outros se tornam intercambiáveis e exploráveis à vontade, descreve Laurent Auzoult, professor de psicologia social e do trabalho na Universidade da Borgonha. Emoldura-se tudo por bajuladores — e por falta de sono —, acrescenta Robert Sutton, professor de gestão em Stanford.

Esse inchaço do ego — essa condescendência hipertrofiada — rende ao austero e higienista século XIX o título de “Eldorado da burrice médica”, nas palavras de Anne Carol, professora de história contemporânea na Universidade Aix-Marseille. Um século que endeusa o racionalismo e santifica o progresso — e, de quebra, produz literatura pseudocientífica às vezes delirante, sobretudo quando pretende “demonstrar” a inferioridade biológica das mulheres, observa Sylvie Chaperon, professora de história contemporânea na Universidade Toulouse 2.

Vivemos a idade de ouro da burrice? Desde que há registros escritos no Ocidente, cada época se viu como a mais infestada de idiotas — na pena de gente instruída que tenta pensar o mundo. Entre os gregos de Heráclito, na Renascença com Ronsard ou Agrippa, durante a Revolução, entre os dândis do romantismo ou da Belle Époque, até os declinistas contemporâneos, sempre se encontra uma fração ruidosa dos intelectuais para quem “antigamente é que era melhor”. Ah, os tempos míticos dos antepassados — mais sãos, puros e morais — em contraste com a juventude “mais violenta, mais ignorante”, profanadora de uma sociedade em queda para o embrutecimento, a deformação, a desnaturação e a vulgaridade! Diante da coroação de populistas e da revoada de corvos na internet, dá vontade de achar que, agora sim, a profecia se cumpre.

Um tema só aparentemente leve — e de fato explosivo

Mais idiotas do que nunca? Nada garante (cuidado com o viés da negatividade!), mas nunca foi tão fácil nem tão barato fabricar e difundir asneiras — com “pesquisas”, “estudos científicos” ou “debates” forjados, que sequestram a atenção midiática, alerta Pascal Froissart, pesquisador do Cemti (Centro de Estudos sobre Mídias, Tecnologia e Internacionalização). O ceticismo, um dos antídotos da burrice, também pode virar arma para nos fazer duvidar da democracia, do aquecimento global — de qualquer saber e conhecimentos humanos…

Esta mudança relâmpago já dá a medida de como a burrice é um tema falsamente ardiloso — e altamente explosivo. De nossa parte, nunca ficamos blasés… e jamais daremos o assunto por encerrado! Ficam muitas perguntas. A criança, por exemplo, parece escapar à burrice no sentido de que ainda não tem viseiras, observa Alison Gopnik, professora de psicologia e filosofia em Berkeley. Mas e o adolescente? Em geral, o que fazer diante da burrice em família? O Homo sapiens está piorando? Acompanhado, a gente fica mais burro? E nas redes sociais? Que filosofia invocar para encará-la? E como rastreá-la em nós mesmos?

Entendendo melhor a burrice com dicas de livros de cabeceira

Para se tornar um expert em “idiotologia”, leia as quatro referências que dominam o tema:

Harry Frankfurt — Professor emérito de filosofia em Princeton. Seu conceito de bullshit (“falatório sem compromisso com a verdade”) antecipa, já em 1986, a pós-verdade: o que importa, no falar público ou privado, não é dizer a verdade, nem mentir, nem ser coerente. É “ter razão” porque se decreta isso em tom estrondoso, numa indiferença gélida à própria noção de verdade. E azar dos outros: “são idiotas”!
Fonte: De l’art de dire des conneries (2005), reedição Mille et une nuits, 2020.

Daniel Kahneman — Professor emérito de psicologia em Princeton. Passamos o dia alternando dois modos de pensar: um rápido, automático, prático — fonte de atalhos, às vezes de erros —; e outro lento, gastador de energia, também falível, que assume quando não dá mais para repetir rotinas. Décadas de trabalhos com o saudoso Amos Tversky fundamentaram a economia comportamental e renderam a Kahneman, em 2002, o Prêmio do Banco da Suécia em Ciências Econômicas em memória de Alfred Nobel — o “Nobel de Economia”, para os íntimos.
Fonte: Système 1 / Système 2. Les deux vitesses de la pensée (2011), Flammarion, 2012.

Aaron James — Professor de filosofia na Universidade da Carolina do Sul. O bobo simples é menos comum do que o idiota sádico — o “babaca” que põe toda a sua engenhosidade a serviço de prejudicar você. O “babaca” feito homem seria Donald Trump: Aaron James chegou a escrever um livro para desmoralizá-lo e impedir sua chegada à Casa Branca. Caramba, não deu certo!
Fonte: Assholes. A Theory, Vintage, 2014 (sem tradução).

Robert Sutton — Professor de gestão em Stanford, oferece chaves para recrutadores identificarem “sem-noção tóxicos” antes que seja tarde — isto é, já na entrevista —, mirando o objetivo “tolerância zero para idiotas” nas empresas (No Asshole Rule). A esperança é a última que morre…
Fonte: Objectif zéro-sale-con. Petit guide de survie face aux connards, despotes, enflures, harceleurs, trous du cul et autres personnes nuisibles qui sévissent au travail, Vuibert, 2007.


Nota deste tradutor: O texto original usa a palavra connerie (algo entre “burrice”, “asneira” e “estupidez”) e con (de “idiota” a “babaca”, registro coloquial da língua francesa). Mantive “burrice/idiota” pela naturalidade em português. Connologie é um neologismo humorístico; que aqui adotamos ora como “idiotologia” ou “estupidologia”, já que o sentido semântico é equivalente. Mantive itálicos para os títulos das obras. (Arthur da Paz)

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