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INFLUÊNCIA INTELIGENTE TODO DIA

Ah, humanidade… entre a cegueira e o milagre

Na lucidez inquietante de Lívia Fiorotto Campos, um manifesto íntimo e pungente sobre as lealdades que nos aprisionam, o sentido de propósito e a urgência de recuperar a essência perdida da nossa condição humana

Solidão e consciência: o peso invisível das guerras internas e das distâncias humanas

Ah, humanidade…

Quantas vezes as pessoas são leais àquilo que as escraviza? A padrões de comportamento, a outras pessoas, a vícios, a passados mal resolvidos, a sonhos de grandeza que escondem uma necessidade de autoafirmação. Até onde você iria para vencer a solidão, para encontrar propósito ou, simplesmente, para ser amado? Para ser aceito ou respeitado? Para ser valorizado? Para ser livre?

Você é capaz de perceber as pistas sociais, de ver além do óbvio? Você é capaz do sacrifício, da abnegação pessoal? De doar-se a alguém, a uma causa? O que é propósito pra você? Você vai saber lidar quando apontarem as suas fraquezas? Quando os chefes usarem o golpe baixo de explorar o lado pessoal para manipulá-lo na sua profissão? Quando um amigo íntimo trair sua confiança e contar um segredo seu? Quando o seu parceiro ou parceira lhe der motivo para sentir ciúmes?

Quando estiver só você e Deus, quando as cortinas baixarem, quando o palco da vida não for mais um espetáculo, o que você vai dizer? Você ainda vai ser a mesma pessoa? O que você vai dizer para si mesmo no silêncio, no conforto desconfortável do luxo vazio, à noite, quando todos estiverem recolhidos, quando você encostar a cabeça no travesseiro da cama fria e mergulhar nas lembranças do dia, do mês, do ano, da sua vida inteira?

O que o aquece? O que o move? Qual é o seu porquê? Nos lugares mais frios, mais distantes, mais inóspitos, nos cantos sombrios dos abismos do mundo, você tem calor na alma para se manter vivo? Quando todas as suas forças já não forem suficientes, quando você estiver confuso, perdido, sem saber mais o que fazer, você ainda vai… sentir?

Quando os sentidos não forem confiáveis, quando o ego cegar sua emoção, você vai lembrar quem você é? Quando a razão for rígida demais — pensar demais, justificar demais — você vai se permitir sair da caixa, arriscar? Você vai ousar ser imperfeito? Vai se mostrar em atitudes? Vai usar as atitudes, as palavras, a sua voz, as suas mãos, vai usar tudo, arriscar tudo, sem culpa, sem medo, sem vergonha, para ir até o fim, para viver intensamente, para proteger, para salvar, para amar, para ser pleno?

Você aceita o desafio da vida? Você encara os seus fantasmas? O que você faz com o que sabe, com o que percebe? E com o que sente? Com o que vê? Qual é o seu preço? Você quebraria uma regra? Você seria compassivo consigo mesmo, você se perdoaria? Ou você só perdoa os outros? Você agrada sua família ou apenas agrada os outros? Você só é bom com aqueles que ama ou consegue ser misericordioso com o seu inimigo?

Você consegue enxergar o sofrimento do outro — o sofrimento disfarçado de ódio, de sede de poder, de autossuficiência, de defesa, de barreira? Você enxerga a solidão silenciosa de quem quer se comunicar e não consegue? Você vê, naquele que não quer se comunicar, a vontade roubada, o desencantamento, a desesperança?

Que foi feito da nossa humanidade? Da nossa capacidade? Que foi feito de nós? Ah, humanidade… tão cheia de si, tão longe de Deus. Mas a dor maior é a dor de Deus.

Depois de tantos avanços científicos, de tanta tecnologia, de tanta estrada, de tanta história, ainda estamos em guerra. Em guerra uns contra os outros, em guerra interior contra nós mesmos, contra a natureza. Ainda não conseguimos enxergar o milagre da vida — nós mesmos como um milagre. As nossas capacidades. As nossas relações. O nosso privilégio.

Ainda somos escravos das nossas lealdades, das nossas vaidades, da ilusão e da pequenez da nossa visão turva, que teima em não ver aquilo que o coração já sabe há tempos. Aquilo que a razão protege. Que teima. Que teima em ser contra si mesma.

Lívia Fiorotto Campos. Este texto foi produzido como exercício de análise do conto O IMORTAL, de Jorge Luis Borges, organizado pelo Grupo de Leitura Dom Livresco que acontece na livraria Nobel, no Shopping Bougainville, em Goiânia.

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