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A tela onírica: como Arthur Schnitzler moldou a última grande obra de Stanley Kubrick

O psicanalista Edson Manzan Corsi discorre sobre o filme De Olhos Bem Fechados e sua relação com Breve Romance de Sonho, do escritor Arthur Schnitzler, contemporâneo da criação da psicanálise e admirado por Freud.

Frame do filme De Olhos Bem Fechados (de Stanley Kubrick)

Quando o mestre cinematográfico Stanley Kubrick faleceu, em 1999, pouco tempo antes da estreia de De Olhos Bem Fechados, nos cinemas, deixou não apenas um testamento imagético-artístico, mas homenagem monumental ao escritor que o impressionava há décadas: Arthur Schnitzler (1862–1931), o "Freud literário" da tão sofisticada, famosa e estético-intelectualmente relevante Viena fin-de-siècle. A adaptação do romance Traumnovelle (1926) — no Brasil, Breve Romance de Sonho — é mais do que um filme muitíssimo bem dirigido; trata-se de diálogo entre dois gênios intensos: sobre desejo, culpa e as questões interentes à temática do casamento.

Médico de formação, Schnitzler trocou o consultório pela literatura para, dentre outros temas, dissecar a hipocrisia e as sombras emocionais (e inconscientes) da burguesia. Contemporâneo de Sigmund Freud, que o chamou de seu "duplo", em carta de 1922, o autor usava, muitas vezes, o fluxo de consciência para revelar impulsos sexuais reprimidos e neuroses então correntes. Em obras exímias como A Ronda (1897) e Senhorita Else (1924), expôs o jogo de aparências de uma sociedade na qual pais tirânicos, mulheres reprimidas e sexualidades problemáticas tinham de ser meticulosamente considerados, se de fato pensarmos em seu trabalho criativo autêntico e de força desveladora. Traumnovelle surgiu nesse bojo: trata-se da história do médico Fridolin, cujo casamento tende a desmoronar, após a confissão de fantasias adulterinas (por parte de sua esposa, Albertine) que o impulsiona, narcisicamente ferido, adentro de uma noite de perigo e autopermissão espantosa, em especial para si mesmo...

Kubrick adquiriu os direitos da obra em 1971, mas apenas em 1999 trouxe a lume sua visada. O diretor transmudou a trama da Viena "carnavalesca" para uma Nova York natalina, substituindo Fridolin e Albertine por Bill e Alice Harford (representados por Tom Cruise e Nicole Kidman). A mudança não foi sem objetivos formais: enquanto o livro mergulha, em fluxo, no onírico, o filme usa certa estética do estranho-familiar, mas com cenas simétricas e detalhadamente montadas, para questionar o que é realidade. Alice, por exemplo, ganha mais substância enquanto personagem feminina; sua confissão ("Ah, se vocês homens soubessem...") ecoa como crítica contundente à ignorância masculina sobre os trâmites (e tramas) dos desejos das mulheres, algo que é bem mais sutil na textualidade original.

Kubrick manteve a essência psíquica e subversiva de Schnitzler, mas intensificou, como é de se imaginar, a linguagem visual: o azul onírico, presente nas cenas de tensão sexual, pode refletir a mente em tumulto, de Bill. Na loja Rainbow, arco-íris, as luzes coloridas são passíveis de serem lidas como sinais de seus desejos inconscientes, mas, por seus próprios meios, pulsantes, ativos...

Objeto central da famosa cena da orgia - a máscara - representa a dupla vida da elite econômica; tema caro a Schnitzler, que, como aventei, denunciava a moralidade falsa de Viena. No filme, seu aparecimento na cama do casal é a potente metáfora da culpa íntima.

A temática da cena, em todo caso, é riquíssima, e pode ser seara muito atraente, inclusive, aos estudiosos sérios de misticismo.

A morte de Kubrick impediu que ele presenciasse sua obra no cinema, mas o debate sobre sua densa relação com Schnitzler permanece instigante. Ambos exploraram como o casamento burguês tende a esconder crises de identidade e problemáticas das relações de poder; e valeram-se de estruturas narrativas labirínticas (o fluxo de consciência, no livro; os planos simétrico-sequenciais, no filme...). Para o crítico Matheus Oliveira, De Olhos Bem Fechados é "um grito de socorro sufocado pela estética do controle" — ecoando a repressão dos corpos, descrita por Schnitzler, em 1926.

O autor austríaco, hoje redescoberto, tem obras editadas no Brasil (Breve Romance de Sonho, Contos de Amor e Morte...), enquanto o filme se tornou objeto de culto. Em 2024, o Instituto Ling destacou sua "exploração das raízes sombrias do desejo" — prova de que a fusão entre os dois artistas é algo que fascina. Como escreveu Freud a Schnitzler: "Você sabe por intuição tudo que eu descobri com trabalho árduo". Kubrick, ao fim, converteu essa forma de intuição em imagem tão idiossincrática - quanto bela.

(Este artigo foi gerado com o auxílio do modelo de linguagem DeepSeek-V3. O autor humano foi responsável pelo prompt inicial, pela edição, revisão, fact-checking e validação final do conteúdo)

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