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INFLUÊNCIA INTELIGENTE TODO DIA

A observação clínica, segundo Wilfred Bion, em seus Seminários na clínica Tavistock

O psicanalista Edson Manzan Corsi, através do grande pensamento analítico do inglês Wilfred Bion, detalha, em breve ensaio científico-jornalístico, sobre importante tema metodológico e epistemológico: o aspecto empírico da psicanálise

Wilfred Bion

Epígrafe:

"O ser humano é uma criatura muito falha. A dificuldade ou o problema é que não há mais ninguém que possa fazer algo a respeito, exceto nós mesmos." (Bion)

A questão sobre o modo de trabalho do psicanalista perpassa várias propostas e discussões - do campo analítico, pelo menos. Um dos autores que, a meu ver, mais bem trabalhou esse tema, com cuidado, afinco e capacidade de abertura reflexiva, foi Wilfred Ruprecht Bion - e alguns dos textos em que podemos vê-lo fazer isso de forma magistral são as transcrições de seus seminários de Tavistock. Neste conjunto de textos, organizados por Francesca Bion (segunda esposa do autor), penso que, apesar de Bion ter falado, com a profundidade que lhe é habitual, de tantos diferentes temas, podemos encontrar a característica de seminários clínicos, devido à frequência, consistência e intensidade com que o psicanalista inglês apresenta aí questões, características e potencialidades acerca do dia a dia do consultório, suas estranhezas,  singularidades e, especialmente, formas de observação empírica, no senso do que é escutado, visto, experenciado mesmo, pelo analista, em diferentes situações e casos. A empiria das observações de Bion busca tangenciar a particularidade do caso a caso, assim como a delicadeza e sofisticação de se estabelecer princípios gerais para o ofício em tela, no que podemos aventar, paulatinamente, sem nenhuma pressa de concluir, se acompanhamos o ritmo bioniano, sobre, usando uma expressão já "clássica" do psicanalista inglês, o "aprender com a experiência".

Um primeiro passo, que almejo trazer à tona, por sua perspicácia e capacidade de instigação observacional, diz respeito a quando Bion fala do "estratagema", ao que tudo indica defensivo, do paciente (ou, como ele próprio também se utiliza, "analisando") que se põe a falar predominantemente de assuntos que lhe tornam concernido, mas, inicialmente, mostram-se claramente fora de seu alcance prático: "Em análise, temos que dar atenção à situação na qual um paciente fala de forma muito clara, muito compreensível, sobre suas preocupações com esta ou aquela causa, ou instituição", de modo a aparecer que ele está "extremamente preocupado" com pessoas e contextos infortunados, de algum lugar distante, sem ter obrigação, aliás, de agir sobre isso de uma ou outra forma: "E então ficamos desconfiados de que o paciente age como uma pessoa preocupada, exatamente como um médico, como um analista - e assim por diante. Mas em algum momento pode tornar-se clara certa mudança: o paciente de fato está incomodado e preocupado com alguma coisa pela qual ele pode fazer algo"; e aqui, então, surge o caminho para o analista, no sentido de observar qualquer sutileza que aponte para alguma mudança de discurso do paciente, por mais que esta soe como mínimo detalhe, por vezes até, primeiramente, quase imperceptível. "Nesse momento, torna-se importante poder assinalar esta observação para o paciente: embora ele esteja falando do mesmo jeito que falou ontem, ou na semana passada, ou no ano passado, soa algo diferente". E surge a admoestação de não se usar, para tanto, um tom lisonjeiro, mas simplesmente observacional mesmo... em todo caso, o psicanalista inglês fala-nos que "o paciente provavelmente acreditará haver sugestões de melhora quando se diz algo desse tipo"; talvez, penso, por ser apontado certo aumento de senso prático, e ele passar a se incluir mais no próprio discurso, e no mundo de ações que lhe são - fatualmente - concernentes.

Assim, Bion resgata-nos a uma referência repetida por Freud: "a insistência de Charcot sobre o ato de observar, que me parece ser a essência absoluta de nosso trabalho. O que observamos? Temos que usar o termo 'observação', como uma espécie de metáfora, uma aproximação, pois utilizamos uma linguagem inadequada ao nosso trabalho - e qualifico este nosso trabalho como algo difícil para ser feito". Todavia; o que observa o analista? Trata-se de aspectos que geralmente permanecem não divisados em demais contatos de sociabilidade. O que estamos a observar envolve uma questão sempre ascendente quanto a nosso trabalho que, em decorrência, precisa estar em contínua manutenção. E como transmitir o que é observado? Qual o vocabulário para se expressar sobre cada situação observada? Em grande parte das vezes, temos de tomar palavras de outros campos para traduzirmos nossas percepções clínicas. Talvez possamos buscar ser mais objetivos, reduzindo nosso vocabulário ao mínimo, e buscando termos que nos são particularmente familiares. Gradualmente, é importante que aprendamos a falar a língua dos analisandos - e vice-versa. Ao buscarmos a precisão de nossas próprias palavras, de nosso próprio modo (permitindo-nos isso), possibilitamos ao paciente entender o que precisamos dizer, ao tomarmos mão destas palavras mesmas. Por exemplo a palavra "sexo" foi emprestada da biologia e a utilizamos como se realmente significasse alguma coisa. Se estivéssemos simplesmente lidando com anatomia e fisiologia, penso que seria possível usá-la de modo razoavelmente correto. Mas, ao usá-la naquilo que consideramos ser uma esfera mental - supondo que exista tal coisa como uma mente, ou um caráter, ou uma personalidade -, surge o problema de definir onde uma pessoa "deixa de ser", quais são suas fronteiras". Cogito que, aqui, Bion pode estar se referindo a quando o paciente usa o vocabulário de seu modo próprio, ou quando, pelo contrário, usa as palavras de forma mecânica ou estereotipada, simplesmente reproduzindo seu largo uso social ou algum teor especificamente instituído, deixando de "ser", de existir em idioma próprio, em uma discursividade (talvez seja correto dizer assim) autêntica.É-nos lembrado que Freud, em Inibições, sintomas e ansiedade, falou da "impressionante cesura do nascimento" (a palavra que Freud usa no original é latina: caesura) e, desse modo, Bion faz uma digressão sobre essas palavras que permanecem impressionantes aos ouvidos em geral, como "nascimento" e "morte", e assim alude ao trabalho com pacientes em estado dito "terminal"; quem garantiria que o estado é mesmo "terminal", e o que de fato terminaria aí... Seu questionamento leva a afirmar que o trabalho do analista deve se ater a o que pode ser feito, e não, em demasia, ser um eco ou mera confirmação do que não pode ser feito.

Haveria, no campo analítico, por exemplo, quem dissesse que não seria operacional fazer análises com crianças "com dois, três ou cinco anos", pois suas fibras ainda não estariam mielinizadas. "O problema com as fibras mielinizadas é que, geralmente, as pessoas que as obtiveram, com frequência ficam tão rígidas, tão estruturadas, que não se consegue fazer passar nenhuma ideia nova através dessa mielina. Por outro lado, se tivermos um bebê razoavelmente inteligente que seja precocemente colocado sobre um penico, seu bumbum não mielinizado parece saber bem o que fazer, funcionando de modo adequado, sem estardalhaço. Nada sei sobre o porquê disso; mas penso que bebês precisam ter uma personalidade - assim como idosos, não importando quão doentes possam estar; ou o quanto convencidos estejam de terem atingido suas posições terminais. Caso tenham atingido, não haverá problema algum. Mas há um problema no minúsculo intervalo de - seja lá qual for - dias, semanas, meses entre esse ponto e o ponto em que eles não mais existirão.

Trata-se de retornar à acepção de que "não temos apenas uma anatomia e fisiologia, mas também uma mente". Somos então levados a uma digressão sobre a temporalidade, numa análise, e os "ruídos" que enviesam nossa escuta. O autor nos fala de como cada sessão deve ser tratada de maneira única, no sentido de não se levar para cada encontro o que aconteceu na sessão passada, um apego prévio às teorias psicanalíticas estudadas e repisadas, assim como todos preconceitos sociais e, ainda, expectativas ou antecipações, até mesmo, tentativas de previsões sobre o caso, estabelecidas pelo analista. É preciso, então, poder perceber os sutis sons, peculiares a cada paciente, sem deixar com que sejam sobrepujados por essa extensa massa de ruídos: sociais, conceituais, ou que até venham de perspectivas adquiridas em sessões anteriores. Afinal, é-nos advertido que o andamento de uma análise não segue uma logicidade cronológica. Não há um caminho reto, contínuo, e um tempo definido, ou ponto específico - no qual se chegar; cabe aos psicanalistas aceitarem a unicidade de cada sessão, sua imprevisibilidade, e o caminho tortuoso, e de idas e vindas (quais sejam...), dentro do processo de cada um. Trata-se de um caminho de tentativa de esquecimento sobre o acúmulo de informações em torno dos casos, mesmo que os pacientes fiquem se esforçando para nos levar a resgates informativos; ao buscar tal redução de fatores mnêmicos atravessadores de nossa escuta e modos de intervenção, "poderemos ter uma oportunidade de penetrar nessa impressionante cesura de conhecimento, fatos, e teremos uma chance de ouvir algo tão difícil de ouvir ou ver". A metáfora trazida frente ao analista é a de se conceder a oportunidade de observar o desarrolar-se do germe de uma ideia. Mesmo que este germe pareça muito estranho, até poder entregar-se ao formato de uma ideia passível de ser articulada. E Bion, então, destaca o aspecto sui generis desse trabalho: "Incrível, não é? Esse é o tipo de coisa com que temos de lidar - fatos incríveis. Isso fascina, nesse nosso trabalho; para se alcançar algum fato é necessário acreditar muito - nenhuma ficção chega perto".Ao examinar sinais e sintomas, um médico pode chegar a aferir diferentes diagnósticos, Bion chama isso de "interpretações" - referentes a sensações que são levadas aos sentidos.

O psicanalista já não pode confiar tanto nos próprios sentidos; torna-se necessário transcendê-los, para encontrar origens e significados, num trabalho junto ao paciente; e nisso (também) a psicanálise se difere do labor médico, o sentido é construído com; não apenas observado e finalmente estabelecido por uma das partes: antes, é um resultado do engajamento da dupla, em um trabalho no qual as ressonâncias de ambos podem fazer germinar ideias, que sejam interessantes à particularidade do caso em questão. "À guisa de esboço: em qualquer situação analítica, há o analista, o paciente e uma terceira instância, que está assistindo - sempre". Para Bion, sempre há três pessoas, e, não raramente, outros, mais à penumbra, pessoas que se presentificam, falam, "participam" da análise, e, aí,  nossa atenção é chamada para o fato de surgirem ecos, informações indiretas, do que é dito, fora do consultório, sobre o paciente e, até mesmo, sobre o analista. Todo esse "ouvir dizer" deve ser limpado, para que se foque frente às falas e fenômenos que acontecem e se atualizam ao longo da sessão mesma. Assim, talvez, venham a se reunir repetições, formações, sinais, "por mais fracos que sejam", e se formatar, então, certo "padrão"; isso acontecerá de maneira a possibilitar-nos traduzir a impressão que adquirimos, a partir de determinadas discursividades articuladas.

Melanie Klein, de quem, aliás, Bion foi paciente, destaca "que a criança cliva o objeto em fragmentos, e que logo a seguir, os evacua; descreve esse processo como 'phantasia onipotente'" (aqui, a grafia de "phantasia" serve para diferenciar o vocábulo das fantasias conscientes, referindo-se então ao âmbito inconsciente). Para Bion, esses movimentos, nos quais, por exemplo, o paciente se livrou de sentidos que lhe foram desprazerosos, podem ocorrer antes mesmo do nascimento: "poder-se-ia dizer que o paciente possui ideias das quais nunca esteve consciente". Porém, mesmo que Bion destaque a interpenetração dos conceitos de inconsciente e consciente, que não seriam categorias tão separadas e claras no dia a dia da clínica, como requerem nossas bases teóricas, haverá pouca chance de investigarmos o âmbito de ideias nunca tornadas conscientes; esse estado mental não estaria acessível quando alguém fala conosco. Há algo de impenetrável no discurso a se desvelar, e temos de levar em conta e sempre lidar com esse "diafragma", essa "cesura". Em todo caso, é na relação analítica, prenhe de limites, e cesuras, que pode ser germinada uma ideia. Isso acontece, advém, na relação. "Há algo que logo surge quando há duas pessoas na sala - uma delas querendo ser analisada e outra querendo ser o analista. Portanto, o germe de uma ideia, de fato, pertence à dupla" . Em mútua e (talvez) crescente colaboração. "Tenho tentado dizer às pessoas que não importa o quão pouco cooperador, o quão difícil, o quão obstrutiva seja o paciente, há uma coisa muito importante de ser percebida, algo que quanto mais for percebido, mais é mais útil será - refiro-me ao fato de que o melhor colaborador que se pode ter não é o supervisor, ou o professor, ou quem quer que se procure para conseguir uma segunda opinião, mas apenas o paciente: a verdadeira cooperação virá dessa pessoa que aparenta ser tão hostil, tão negativa, tão não cooperativa. É mais fácil ficarmos inundados com todo abuso e hostilidade, com incontáveis informações, e, então, não conseguimos ir além. Por outro lado, especialmente quando estamos cansados, sobem muitas teorias às nossas cabeças; podemos chegar a tal ponto que, enquanto soa como discurso articulado, não há nada além de barulho; de jargão. Não é razoável esperar que o paciente seja capaz de desenterrar o significado no dilúvio de teorias psicanalíticas às quais está sendo submetido. Com certeza, é uma colaboração entre os dois, havendo algo fascinante no intercâmbio analítico; os dois integrantes parecem dar à luz uma ideia e, possivelmente, quando nos acostumamos a fazer isso, será provável transformar tal ideia em uma interpretação ou em algum tipo de construção verbal. Os pacientes se aprimoram cada vez mais até que, se a dupla tiver sorte, a análise torna-se redundante, desnecessária. Os dois podem separar-se; cada um segue seu próprio caminho". O processo, destarte, assemelhar-se-ia à visão binocular, mediante um ponto de focalização, no qual o genuíno conteúdo da análise vem a lume. Com o passar do tempo, adquire-se mais confiança, a percepção aos poucos se clareia, sentimo-nos sólidos em nossa visada do que tende a ser o que o paciente diz, sem saber mesmo que o está dizendo, e assim a interpretação bem sucedida pode surgir. Freud, como é retomado pelo autor inglês, diz que ali estejamos presentes, mas em estado de "atenção relaxada". Bion acrescenta que tal estado implica não apenas a entrega à atenção flutuante, mas também desvencilhar-se destas muitas teorias, preconcepções e expectativas; nessas veredas, ascenderá certa oportunidade para que o ponto de focalização se evidencie até que venha a, praticamente, falar por si mesmo - no que é então denominado como momento, ou situação, de iluminação. E aí, ainda assim, é necessário abrir-se para o imprevisível do que virá a acontecer, pois nunca sabemos de antemão quais camadas serão tocadas, e serão vias de novas produções associativas, reações emocionais e resistências: "Melanie Klein disse-me um dia: 'Mesmo com a análise mais profunda, podemos apenas arranhar a superfície': estava certa".

A iluminação vai portanto sendo formada por cada comunicação, cada maior ou menor intervenção, até se formular com consistência e potencialidade de resultados relativos às mudanças e melhoras no modo de funcionar do paciente, das quais necessitamos ainda de seu próprio relato, e não de nossa perspectiva sobre isso, para em decorrência sabermos se fatualmente acontecem. A escuta cuidadosa cabe sobre todos os pontos; até mesmo "as pausas" precisam ser observadas. Bion propõe não se separar corpo e mente: durante a sessão, prefere ver o paciente como aquilo que denominou: "você Mesmo", englobando aspectos somáticos, subjetivos, ou que estejam no imbricado intercâmbio de ambos planos. Seguem duas vinhetas clínicas bem instrutivas: 1) "Tomemos como exemplo um paciente, aparentemente saudável, em boa forma física. Entra, dirige-se ao divã e deita-se. Depois de um certo tempo, notamos que essa pessoa não desarruma o revestimento do divã; ao se levantar para sair, sequer precisamos alisar a superfície - quase não houve movimento. A observação continua, permitindo revelar um padrão (como Freud colocou, citando Charcot); nota-se que o paciente sempre se deita precisa e exatamente no mesmo lugar, dia após dia, semana após semana, ano após ano, penso que suspeitaríamos que essa pessoa bem poderia estar na borda de um precipício; levando em conta sua movimentação física, fica do mesmo modo como se estivesse em catalepsia./Leva muito tempo até que possamos ver esse tipo de ponto, que vai se construindo no tempo, e então enxergamos algo de peculiar..." 2) "O paciente que não me comunicava nenhum fato parecia não ter vida alguma. No entanto, sempre ficava relatando coisas sobre outras pessoas, nunca experimentando frustração. Não precisava, pois eu(it) me sentia frustrado, como seu analista. Uma explicação tão óbvia, que se pode sentir meio desconfiado dela. Penso que essa é uma situação na qual o paciente está projetando parte de si mesmo para dentro de minha pessoa, de tal modo que se alguém vai experimentar frustração, serei eu, e não ele. Ninguém sabe onde este paciente está - nem ele próprio. Desse ponto de vista, alguém poderia localizar a frustração no consultório, caso fosse apenas frustração sentida por este mesmo alguém. Na verdade, havia uma falha nessa localização da frustração. É uma situação realmente misteriosa essa de cair nesse tipo de falha, a de ter esta experiência de ser alguém que sente-se frustrado, de muitas maneiras, enquanto o paciente fica livre de frustrar-se. Sente-se a necessidade de haver alguns fatos para dar suporte a essa situação - o que habitualmente considera-se como fatos -, mas aquilo que habitualmente eu chamo de fatos não estavam lá. Não conheço nenhuma maneira de investigar isso além análise e ter esse tipo de experiência, na qual se possa localizar o sintoma apresentado. Nesse caso, o sintoma era minha frustração. Depois que eu percebi isso, é depois que notei que não acontecia nada com esse paciente, dei-me conta de que todas aquelas pessoas que o paciente mencionava eram partes de seu próprio self. A única evidência que tive eram meus próprios sentimentos e, nesse momento, o problema ficou sendo: como comunicar isso ao paciente? Ainda hesitante, acabei dando a interpretação: 'Penso que o senhor está fazendo com que eu me sinta frustrado ao invés do senhor ficar, e assim não terá nenhum sentimento de frustração'. Sua resposta imediata: uma explosão de raiva e hostilidade. Disse-lhe então: 'Assim que falei, o senhor não se deu conta de que era para o senhor que eu estava falando; reagiu exatamente como se sentisse que eu havia soprado palavras para dentro de sua pessoa, palavras que não queria'. Desse modo, progredimos um pouco: tornou-se cada vez mais claro que a situação analítica não era uma simples conversa entre dois seres humanos; que era isso que parecia soar, e qualquer um poderia ser perdoado por pensar que seria apenas isso, mas não era. Não se trata de um bebê ou criança; não se trata de uma fantasia onipotente, do tipo daquela descrita por Melanie Klein. Penso que a descrição de Klein deve ser mantida, porque é válida. No entanto, é necessário distingui-la da experiência que tento descrever. É muito difícil descrevê-la para alguém que não tenha tal experiência, mas para quem tenha participado dela, será inconfundível". Adiante, Bion ressalta que é necessário sempre estar atento aos diferentes significados de uma mesma palavra. E, ao acrescentar um pouco sobre seu conceito de grade (que aqui não obterá maiores desenvolvimentos, devido à questão do espaço para tanto, mas, em todo caso, podemos referir o leitor ao seguinte artigo: Bion's Grid: A Tool for Transformation [Marilyn Charles, 2002], no qual há uma interessante introdução ao tema), é-nos apresentada a seguinte síntese: "Sendo assim, a observação torna-se uma questão de se ter um ouvido muito agudo para ouvir, provavelmente reforçado pelo que se pode ver".

Um adendo interessante a se fazer pode ser a partir do breve artigo "...em uma sessão, estou interessado naquilo que não sei", do psicanalista Antonio Carlos Eva, cujo título é retirado de um livro de Bion intitulado Cogitations. A partir de sua leitura bioniana, Eva propõe que a função psicanalítica, no âmbito clínico, é apontar para a presença de incompletudes e incongruências, advindas das pré-concepções - em busca de experiências (realizações), propiciadoras de formações, percepções de elementos e suas funções, de modo a modificar as lacunas e incongruências atinentes ao início da análise. Assim, o que deveria caracterizar uma sessão são os aspectos do desconhecido a se apresentar ali, e não o que paciente e analista pensam que conhecem. Trata-se de observar a sessão que se desenrola como a fonte maior de nosso conhecimento, e de possibilidade de mutação - dos conteúdos em questão no caso. "Como diz Bion, aquilo que se pensa que se conhece apenas nos cria mais um embaraço para o caminho de estar na experiência do presente".

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