Um frio de lâmina, excitante, corta a pele na avenida. Os fios-galhos entrelaçados de neon me envolvem, me desnudam de baixo para cima. Sou fúcsia; sou o que não esperam de mim. E é com essa cor que observo os dias desfilarem, cada vez mais cheios de seres transeuntes e suas animosidades líquidas. Tudo parece se cindir no asfalto, como na vida: ou é do bem ou é do mal. E eu? Eu insisto em querer sempre para além.
Nesse mundo cindido, a arte escorrega para o porão da sorte. Os artistas, na labuta do dia a dia, insistem na clemência e na sobrevivência da cidade que os ignora. Vejo os corpos femininos, recortados e esculpidos, terem o êxtase furtivo embotado sob uma verdadeira geografia de maquiagem. Observo as crianças, transformadas em adultas em miniatura porque o tempo, outrora um rio, virou mercadoria rara. E os homens, amedrontados, atuando num palco de competição acirrada que não admite fraquezas.
O tempo é agora um inimigo fatal. E a cidade, que se vende como bucólica, mascara seus pontos fracos sob uma luz artificial. Está cheia de corpos, mas paradoxalmente vazia: sem luz para o espírito, sem calmaria para a alma. Diante de um vazio tão populoso, talvez a única resistência seja continuar a enxergar com essa cor que não esperam. Talvez a melhora, se é que existe, comece nesse olhar que se recusa a simplificar e ousa ir sempre para além do asfalto.