Sumário
Em seus Cadernos do Cárcere, escritos entre 1929 e 1936, o pensador italiano Antonio Gramsci escreve: “A crise consiste justamente no fato de que o antigo está morrendo e o novo não pode nascer: durante esse interregno, observam-se os fenômenos mórbidos mais variados.” Embora quase centenária, essa citação parece ter sido escrita para o nosso tempo: o espetáculo do mundo atual dá a impressão de que o fim do velho mundo acompanha, por ora, a dificuldade de delinear o novo. O que aconteceu para chegarmos a esse ponto? Quais são as ideias que nos permitem antecipar o futuro, em vez de sofrer os “fenômenos mórbidos” de que fala Gramsci?
TÚMULO PARA O MUNDO ANTIGO
No campo das ideias políticas, o fenômeno massivo das últimas duas décadas reside na desconstrução da ordem democrática e liberal, que havia triunfado sobre o modelo soviético, extinto com a queda da URSS em 1991. Esse mundo havia iniciado um triplo projeto de liberalização: econômico, por meio do capitalismo globalizado e financeirizado, sustentando o livre-comércio; político, com um Estado reduzido ao papel de árbitro, limitando seu campo de atuação para não obstruir o funcionamento da sociedade e da economia; e jurídico, com a afirmação dos direitos humanos, destinados a se estender por todo o planeta devido à sua universalidade. Esse mundo, que tinha o rosto dos Estados Unidos, deveria ser o único a moldar nossos mapas mentais.
A doutrina do "ao mesmo tempo" é hoje interpretada como indecisão do poder e desconhecimento de um país.
As coisas não aconteceram assim. Nos três aspectos, o movimento da história foi inverso ao previsto. Economicamente, as potências estatais optaram pelo protecionismo nacional ou regional, acompanhado de predadores sobre outras partes do mundo. O capitalismo não foi fonte de emancipação e igualdade de condições; pelo contrário, ampliou as desigualdades dentro das nações e serviu como braço armado do nacionalismo autoritário, com a China definindo o tom da época. Politicamente, o Estado afirmou-se como um criador de normas, ampliando seu escopo de atuação tanto na ordem interna quanto na internacional. Já na esfera jurídica, assiste-se a uma guerra de narrativas conduzida pelas potências do Sul Global, em especial China e Rússia, que contestam o universalismo, interpretando-o como um cavalo de Troia da dominação ocidental.
A trajetória americana reflete esse projeto liberal fracassado. O retorno de Donald Trump ao poder é menos uma expressão de renovação política e mais um sintoma de uma democracia em crise: onde um réu condenado reverte a seu favor as acusações criminais de que é alvo; onde seu adversário sofre, inversamente, por ser a personificação de princípios progressistas considerados desconectados da realidade pela maioria dos eleitores; onde os dois lados não dialogam, exceto por insultos ou até agressões, trazendo o risco de uma guerra civil.
Na França, a recente dissolução da Assembleia Nacional e as eleições legislativas subsequentes não levaram à clareza desejada pelo presidente da República, Emmanuel Macron. O sistema político, estruturado em torno do eixo direita-esquerda, desmoronou sem que se iniciasse uma reconstrução. Dividida hoje em três blocos (esquerda, centro e direita), a política francesa está paralisada, aguardando uma eleição presidencial que só ocorrerá daqui a dois anos. O país parece preso às suas instituições, forjadas para evitar a instabilidade parlamentar da III e IV Repúblicas. Essas instituições já não parecem capazes de cumprir esse papel nem de definir uma direção ideológica clara. Essa situação fomenta impulsos radicais, sejam de esquerda ou de direita, em detrimento do “bloco central”, considerado responsável pelos fracassos por tentar conciliar ideias políticas irreconciliáveis: gasto público e liberalização, jacobinismo e descentralização, democracia participativa e bonapartismo, europeísmo e soberanismo. A doutrina do “ao mesmo tempo”, defendida pelo candidato Macron em 2017, foi bem-sucedida porque sinalizava uma possível união; hoje é interpretada como indecisão do governo e desconhecimento de um país profundamente transformado.
Os exemplos poderiam ser multiplicados: seja ao observar a situação das “velhas” democracias liberais (Inglaterra, Alemanha, Suécia...), dos regimes “iliberais” como Hungria e Sérvia ou dos Estados autoritários como Irã e Turquia, o centro de gravidade deslocou-se, senão para a direita, ao menos no sentido das paixões populistas, nacionalistas ou conservadoras. Uma única certeza: o perdedor é a ideologia liberal. “The World is Flat” (“O Mundo é Plano”), proclamava em 2005 o editorialista do New York Times Tom Friedman, sugerindo com esse título a onipotência da globalização, que apagaria fronteiras comerciais e políticas em favor da cooperação e interconexão. Apenas vinte anos nos separam dessa visão. Parece um século, tantas são as mudanças.
A criação de coletivos locais está moldando novas formas de fazer política, fora do Estado.
A REVANCHE DAS PAIXÕES
Em vez de um mundo plano, regido pela racionalidade, surgiu outro, marcado por acidentes e pelas paixões, que, como destacou Pierre Hassner em sua obra homônima, "tomaram sua revanche". Essas paixões têm duas faces: por um lado, refletem o lado sombrio de um mundo fragmentado; por outro, revelam uma repolitização de atores engajados na batalha de ideias para refundar o mundo.
A primeira paixão em ação é o medo. Um medo do futuro domina as sociedades ocidentais, levando ao sucesso de ideias survivalistas e catastrofistas que anunciam um fim próximo, sob a ameaça de uma guerra nuclear e da rápida degradação climática. Contudo, como demonstrou Hans Jonas em O Princípio Responsabilidade (1979), existe uma "heurística do medo", capaz de identificar perigos para evitá-los.
No campo ambiental, social e político, o medo pode inspirar uma prudência política distinta da mera precaução, antecipando riscos e ameaças potenciais (como aquecimento global, crises ambientais e sociais, guerras...). Ele se insere em uma abordagem prospectiva de longo prazo, que se torna ainda mais necessária diante da necessidade de proteger bens públicos globais — também chamados de "comuns" — como os oceanos abertos, as calotas polares e as florestas primárias.
Sem o receio de perder esses bens, como agir politicamente? Quando o interesse imediato incentiva a pilhagem em vez da proteção, o medo funciona como um motor psicológico para criar novas normas, como demonstrado pelo recente tratado sobre os oceanos abertos.
Outra paixão, ou emoção, que está em jogo é o desgosto com a ordem existente, que, no plano político, se traduz no desejo de romper com as comunidades históricas para criar outras novas. Assim, o "direito à desconexão" se expandiu para a informação: muitos cidadãos estão se afastando de uma atualidade política percebida como ansiosa. Isso contribui para a criação de ilhas protegidas da política, onde o rejeitamento dos coletivos estabelecidos (partidos, igrejas, sindicatos, famílias...) visa forjar os seus próprios. Isso tem consequências políticas significativas, como a abstenção e a desfiliação política, que contribuem para a atual desconfiança política. O tempo em que os partidos políticos acompanhavam os cidadãos "do berço à tumba" acabou.
Ao mesmo tempo, esse fenômeno tem suas virtudes: a criação de coletivos em nível local está moldando novas maneiras de fazer política fora do Estado, sem que isso represente uma ameaça secessionista ou sectária. Silenciosamente, aqueles a quem Éric Dupin chama de "desbravadores" inovam em sua relação com a política e incentivam iniciativas de sobriedade: alimentam circuitos curtos, constroem formas de autonomia energética, reinventam os modos de habitação repovoando áreas rurais, restauram habitats abandonados ou até criam espaços de vida com baixa pegada de carbono.
Por fim, uma outra paixão que pode ser mencionada é a raiva, cuja geografia está, primeiramente, no Sul global. A raiva, ou o desejo de vingança contra a dominação ocidental, de fato alimenta conflitos de grande escala que visam contestar essa dominação. Em um primeiro momento, ela alimentou o terrorismo jihadista de grupos não estatais como Al-Qaeda ou Daesh, com o auge sendo os atentados de 11 de setembro de 2001. A raiva se estendeu depois aos Estados. Em fevereiro de 2022, a Rússia de Vladimir Putin lançou um ataque militar à Ucrânia, levando a uma guerra aberta que hoje tem um saldo de um milhão de mortos. Em 7 de outubro de 2023, o Hamas realizou um atentado de extrema violência contra a juventude israelense, ao qual o exército de Israel respondeu com ataques destrutivos à população e à infraestrutura civil de Gaza, na Palestina. Embora a raiva, quando convertida em vingança, seja destrutiva, ela também pode se transformar em fervor, que alimenta a mobilização por causas e por pessoas. Movimentos de emancipação das mulheres (#MeToo) ou das minorias negras (Black Lives Matter) começaram com atos de raiva relacionados a violências sofridas e, mais tarde, adotaram o fervor, que ajudou a reverter o estigma da vergonha (outra paixão que, segundo Frédéric Gros, é revolucionária). Com o tempo, podemos perceber como esses movimentos mudaram comportamentos e nossa relação com o outro.
QUANDO AS IDEIAS IMPORTAM
O cenário das ideias políticas foi, portanto, transformado em um curto espaço de tempo, criando a sensação de uma aceleração da história. Um triplo fenômeno está em ação.
Primeiramente, uma tendência ao deslocamento. Frente ao declínio das potências ocidentais, o novo mundo parece ser desenhado pelos países do "Sul global". Um dos fenômenos massivos é que as ideias políticas estão sendo elaboradas em lugares tão diversos quanto em "nós", de modo que se fala de "desocidentalização". Esse termo mostra claramente que se trata de um movimento de oscilação e contestação, e não de uma ideologia coesa. Neste ponto, nada substitui a tradição democrática e liberal, exceto a ideia dos defensores da linha autoritária, segundo a qual seria necessário restaurar a ordem anterior à democracia, considerada mais sólida, eficaz e justa.
Dentro dos movimentos autoritários, observa-se uma hibridação entre tradição e tecnologia.
O segundo fenômeno marcante na batalha das ideias políticas é a confrontação da demanda autoritária, dentro dos Estados autoritários ou liberais, e do progressismo, recomposto através da interseccionalidade (raça, gênero, classe). Dentro dos movimentos autoritários, há uma estranha hibridação entre tradição e modernidade: de um lado, um uso político das tradições, especialmente religiosas (hinduísmo na Índia, confucionismo na China, salafismo no Oriente Médio, catolicismo conservador no Ocidente...); de outro, a modernidade é utilizada estrategicamente pelas novas tecnologias. Essas últimas haviam sido associadas espontaneamente pelos pensadores liberais à cooperação, à interconexão, etc. Porém, observa-se, inclusive nos Estados Unidos, templo do liberalismo, que elas podem ser colocadas a serviço de uma dinâmica autoritária de vigilância global e da manipulação da verdade. No entanto, essa demanda autoritária vem acompanhada de um ressurgimento do progressismo, especialmente dentro da juventude. Vários movimentos reformulam a política ao combinar ideologias tradicionais como o socialismo e a ecologia. A emancipação econômica e social é repensada à luz de novos desafios: inteligência artificial, biometria, relocalização, solidariedade intergeracional...
Em terceiro lugar, as ideias políticas são resilientes. Elas estão longe de ter dito sua última palavra. Certamente, muitas vezes são maltratadas, ou até odiadas, como um reflexo de um mundo político que gera crescente desconfiança, da qual o populismo é a tradução... ideológica. Expulsas pela porta, retornam pela janela. Por mais que sejam consideradas ultrapassadas, inúteis, abstratas, perigosas, ingênuas, elas continuam sendo protagonistas na mobilização e na ação política, mesmo que aqueles que as promovem, às vezes, se distanciem delas, chamando para o "pragmatismo" e o "bom senso". Se sejam assumidas ou disfarçadas, as ideias políticas moldam o mundo comum, ontem, hoje e amanhã.
Jean-Vincent Holeindre é professor de ciência política na Universidade Paris-Panthéon-Assas, onde dirige o Centro Tucídides, especializado em relações internacionais. Ele publicou obras como La Démocratie. Entre défis et menaces (Ed. Sciences Humaines, 2020) e Nations désunies? La crise du multilatéralisme dans les relations internationales (com Julian Fernandez, CNRS, 2022).