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INFLUÊNCIA INTELIGENTE TODO DIA

O hospital que testa os limites da Política e da Justiça em Goiás

⦿ O Hospital Cora virou arena de uma disputa que ultrapassa a esfera jurídica. ⦿ No tablado, Caiado e Marconi duelam movidos por forças que vão além da administração pública. ⦿ Entre o pragmatismo político e o direito à saúde, o que resta é a urgência de um reencontro com a grandeza institucional

O Complexo Oncológico de Referência de Goiás, o Hospital Cora: palco de esperanças e de uma crise institucional que hoje mobiliza forças do Governo e Ministério Público.

As paredes recém-erguidas do Complexo Oncológico de Referência do Estado de Goiás, o Cora, batizado com o nome de uma poetisa cujo verbo simples retratava profundamente a complexidade humana, refletem agora uma metáfora dolorosa da política goiana. Essas paredes, agora convertidas em espelhos de uma alma coletiva, exibem as cicatrizes abertas pelo conflito institucional que se desdobra entre o Governo de Goiás e o Ministério Público estadual.

O hospital, idealizado para trazer alívio a milhares de goianos aflitos pela dor do câncer, tornou-se um palco inesperado. Não um palco onde brilham as luzes da cura ou o conforto do atendimento, mas um tablado onde dois gigantes se enfrentam, numa luta cujo impacto ultrapassa os limites da política e reverbera nas consciências cidadãs.

Para entender o conflito é preciso recuar alguns passos, olhar com cuidado o caminho até aqui percorrido. Desde o início, o projeto nasceu sob o signo da urgência e do pragmatismo administrativo. O governador Ronaldo Caiado, conduzido pela necessidade de prover uma solução rápida e eficaz à população, optou pela dispensa de licitação. A justificativa parecia simples e lógica: a parceria com a Fundação Pio XII, referência nacional no combate ao câncer, encurtaria caminhos burocráticos e garantiria qualidade imediata ao atendimento.

Porém, se é verdade que atalhos encurtam trajetos, também é fato que os caminhos estreitos nem sempre são os mais seguros, especialmente quando se trata da administração pública. A decisão do governo foi rapidamente questionada pela promotora de justiça Dra. Leila Maria de Oliveira, que, no exercício das suas funções constitucionais, apontou uma possível irregularidade na ausência do processo licitatório. Sua recomendação, distante de ser um simples comentário opinativo, traduzia-se num alerta necessário à legalidade e à transparência, pilares fundamentais de qualquer Estado Democrático de Direito.

Aqui, o conflito adquiriu sua dimensão atual: institucional e filosófica. De um lado, o Governo de Goiás, sob a justificativa da urgência social, defendeu sua posição. Do outro, o Ministério Público, sustentando o rigor indispensável das leis, colocou-se firmemente como guardião da ordem jurídica.

Mas o caso não ficou restrito a uma simples divergência técnico-jurídica. Numa entrevista dada ao jornal O Popular, o Procurador-Geral do Estado, Rafael Arruda, reagiu ao Ministério Público de forma incisiva, classificando a recomendação ministerial como mera intimidação, ato desprovido de fundamentos jurídicos sólidos. Nesse ponto, ergueu-se o muro de um conflito que ultrapassou rapidamente a fronteira administrativa e se tornou político e ético, lançando as instituições numa dança perigosa sobre a corda bamba do equilíbrio social.

Essa crise atual nos faz lembrar da imagem bíblica de dois gigantes, cuja luta pode esmagar, no meio, o povo que assistia. O confronto institucional deixou a sociedade goiana apreensiva, como espectadores diante de uma tempestade cujos raios e trovões ameaçam o telhado já frágil da confiança pública.

No cerne da questão reside uma importante reflexão, já velha conhecida do dicionário maquiavélico: o fim justifica os meios na gestão pública? Até que ponto a urgência social permite flexibilizar regras e procedimentos tão caros ao Estado Democrático de Direito? São perguntas cujas respostas devem ser dadas com a sobriedade da razão e a sensibilidade da consciência moral.

Se por um lado, é inegável a necessidade inexorável do Hospital Cora, é também impossível ignorar que atalhos administrativos abrem portas perigosas, criando precedentes que podem fragilizar o tecido institucional do Estado. Uma democracia madura não pode abrir mão de seus fundamentos jurídicos sob pena de desmoronar internamente, vítima das mesmas urgências que pretendia resolver.

O governo estadual tem um dever absoluto com a transparência, a impessoalidade e a legalidade dos seus atos. Da mesma forma, o Ministério Público cumpre sua missão quando aponta desvios, mesmo que incômodos, em nome da preservação da integridade institucional. Contudo, o equilíbrio é uma arte rara, quase utópica no embate entre forças tão vigorosas.

Uma solução possível reside no diálogo franco e transparente entre as partes. Talvez a assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) pudesse reequilibrar as forças em conflito, garantindo a continuidade do projeto com maior segurança jurídica. Outro caminho seria submeter a questão ao exame de instâncias superiores, que, livres da pressão local e imediata, poderiam apontar uma saída equilibrada, preservando tanto a necessidade pública quanto a solidez institucional.

Ronaldo Caiado e Marconi Perillo se cumprimentam ao final da abertura da Tecnoshow 2011, em Rio Verde. Na época, Marconi era governador de Goiás e Caiado ocupava o cargo de deputado federal. A foto, tirada em 12 de abril de 2011, registra um dos inúmeros momentos de parceria pública entre os dois. (Crédito: Walter Alves)

Mas enquanto o conflito persiste, o povo goiano assiste inquieto à repetição de uma velha cena: Caiado e Marconi. Esses dois nomes não apenas protagonizam, mas personificam a disputa maior que subjaz todo o embate atual. Marconi Perillo, adversário político de Caiado, foi um dos primeiros a denunciar o modelo adotado no Hospital Cora, suscitando questionamentos quanto à lisura e à prudência da decisão do atual governo. Caiado, por outro lado, enxerga nessa oposição um oportunismo político, uma tentativa de enfraquecer sua gestão e impedir que se colham os frutos dessa obra.

Assim, o Hospital Cora se converteu numa arena onde as velhas feridas políticas, nunca cicatrizadas, entre Caiado e Marconi são novamente abertas. É mais uma briga de titãs, repetição trágica de um duelo cuja maior vítima é sempre a população goiana.

Se há alguma conclusão neste conflito, é a constatação triste de que a política, quando transformada em duelo de dores pessoais, frequentemente ignora o verdadeiro interesse público. Que Goiás consiga reencontrar rapidamente o equilíbrio, preservando a saúde física do seu povo e, sobretudo, a saúde institucional do Estado. Que as lições duras dessa disputa sejam aprendidas e, no futuro, sirvam como guia para decisões mais maduras, mais transparentes e mais humanas.

Afinal, se estas paredes erguidas do Hospital Cora hoje testemunham mais um capítulo da velha e desgastante guerra travada entre Caiado e Marconi, que estes dois gigantes da política goiana compreendam, finalmente, que sua luta maior não deveria ser contra si mesmos, mas contra os conselheiros obscuros e os urubus partidários que, parasitas costumazes, nutridores de falsidades, vaidades e bolsos, às sombras do poder, alimentam-se das dores do Estado e impedem que ambos alcancem a grandeza da conciliação.

Batista Custódio: espírito conciliador após a partida. Ronaldo e Marconi somaram forças para o último adeus ao bom amigo

Neste ponto, permitam-me abrir um parêntese profundamente pessoal. No dia 25 de novembro de 2023, testemunhei, com o coração dilacerado, a partida do meu pai, Batista Custódio, levado pelas complicações do mesmo câncer devastador que o Hospital Cora agora promete combater. Batista, homem que dedicou sua vida ao sublime valor da Liberdade, era amigo próximo tanto de Marconi Perillo quanto de Ronaldo Caiado. Marconi, inclusive, é padrinho do meu irmão João do Sonho.

Em um momento simbólico e que permanece gravado para sempre em minh’alma, vi esses dois gigantes da política goiana, já separados pela amarga rivalidade, carregarem, juntos, o caixão de meu pai até seu repouso eterno. Aquela cena, registrada para sempre em fotografias silenciosas, revelou-me algo inquestionável: sob as camadas do conflito e da disputa existe uma humanidade profunda e uma capacidade latente de conciliação entre Caiado e Marconi...

Ah, quem dera os dois entendessem que foram feitos para ser sóis de uma mesma galáxia, capazes de iluminar destinos inteiros se orbitassem em harmonia. Mas, frente a tantas colisões, cercados por asteroides rodopiantes de vaidade e meteoros rasantes de oportunismo, gravitam, cada vez mais, atraídos à rota que causará a implosão de suas luzes.

E depois... o que restará?... Apenas dois vagalumes. Pequenos, frágeis, piscando, intermitentemente, na imensa noite política de Goiás...

De sóis a vagalumes: metáfora visual da trajetória política marcada por colisões e pressões externas. Dois líderes, capazes de iluminar destinos, hoje gravitam sob a sombra de forças que os afastam da possibilidade de conciliação.

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