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INFLUÊNCIA INTELIGENTE TODO DIA

No casarão de Hefesto, a convite de Orfeu

Entre vampiros bem-vestidos, incêndios que não queimam e risadas cruéis, o narrador atravessa um inferno mais psicológico do que metafísico. Uma crônica onírica, sobre ilusões morais, falsas amizades e o susto de reconhecer o mal onde menos se espera.

Nem todo inferno arde em chamas: alguns se sustentam na ironia, na vaidade compartilhada e na confortável certeza de que o mal sempre habita o outro — até que o espelho devolva a imagem inteira. (Crédito: ChatGPT)

Tenho muito pouca experiência com o inferno.

Quando cheguei lá esta noite, trazido pelas mãos de Orfeu, adentrei-me num casarão habitual. Lá estavam outros amigos e inquilinos. Vestíamos a capa dos vampiros.

A elegância da gala nos ternos black-tie, os pés coroados por sapatos italianos caríssimos… Para disfarçar a palidez cadavérica, um batom carmim nos lábios desidratados devolvia-nos a vivacidade.

No espelho do salão, nos sentíamos elegâncias em ampla prosa no esticar da noite. Conversávamos vivamente sobre as futilidades que entretêm os espíritos arraigados no frívolo da Terra. Fingíamos ser os guardiões de uma intelectualidade obtusa e ríamos, como se numa academia de mestres e doutores dos temas mais caros no sofisticalato do pueril.

Então a prosa ia boa em nosso sobrado, quando o repentino arrebentou o súbito, e vários pontos de incêndio e fogo começaram a se alastrar céleres e inevitáveis.

Nos entreolhamos. Olhão arregalado, eu mirando os outros quatro morcegões bem-vestidos, com suas togas, capas e sobretudos elegantes. A pequena assembleia, pois, concordou, com um aceno conjunto de ombros, de que era eu quem deveria dar cabo do problema.

Fui. Quando atravessei a primeira porta no andar de cima, olhei para baixo e vi o estado real do casarão que nos abrigava. Cheio de buracos, as ripas de madeira emborcadas abriam fendas que davam visão aos vários focos de chama que consumiam o nobre espaço em toda a parte.

Mas aquele fogo ateado por Hefesto não desbastava, em sua brasa pipocante, a substância das paredes ou do piso. A chama mística do inferno apenas fingia comer as paredes, tingindo-as com um verde-musgo incandescente.

Na ante-sala, onde saí correndo para socorrer sei lá o quê, conviviam ali pererecas respirando acomodadas nos cantos e escorpiões ligeiros e esguios en passant. Quando meu sapato assustou o chão no impacto do piso, uma delas pulou em mim e senti um tremelique no contato com a gosma fria e úmida que lhe vestia a pele. Havia toda uma comunidade coaxando no brejo daquele segundo andar da casa estranha e bizarra que eu visitava.

A paisagem infernal combinava elementos do brejo de lama pegajosa com o estalar da queima de madeira encharcada de lodo. Talvez por isso, nessa química estranha, a casa mágica do inferno não era carcomida por inteiro na brasa assanhada.

Mas não era menos assustador. Algumas labaredas subiam do chão como gêiseres irrompidos do subsolo, e, se eu não tirasse a cara do rumo, ficaria tostado. Sentia o calor passando com sua ameaça de ardência.

Corri para pedir ajuda aos colegas, mas, quando voltei ao salão, olharam para mim e estouraram um turbilhão de bocas e risadas.

— “Ele acreditou! Hahaha...” — e riam, riam. Era como o riso dos ricos que chegam até a inclinar o corpo para trás para rir, tamanha a ausência de problemas na leveza da alegria. Um riu tanto que chegou a dizer “chega, haha, chega, hahaha”, apoiando uma das mãos no ombro de outro comparsa enquanto sua mão livre enxugava o rosto molhado de chorar de rir.

Foi só aí que percebi que tinha sido enganado intencionalmente pelos amigos da ocasião. Eu realmente não tenho tato para o inferno. Já esses canalhas estavam acostumados com a imutabilidade da paisagem e me pregaram essa peça. Depois que acalmei o coração acelerado e entendi a situação, passei a investigar o mistério daquele sonho que eu visitava.

Percebi, na observação cuidadosa, que aquele horizonte se alterava quando ocorriam picos de atividade vulcânica devido aos abalos sísmicos dos sentimentos mais apodrecidos. O fogo, o brejo, o frio se materializavam em consonância a situação emocional e íntima dos próprios errantes daquela comunidade; seja lá qual fosse o beco ou esquina daquela cidadela astral em que eu me encontrava.

Vi também que o ódio, a mágoa, o rancor, a inveja, a avareza se combinavam no ar como enxofre liquefeito na seiva das correntes de pensamentos endurecidos nas tragédias pessoais mais graves.

Os assassinos cruéis e os políticos déspotas estavam irmanados na mesma frequência, só que os da segunda categoria tinham a certeza de que eram deuses e não se viam no looping infinito de suas ilusões purgatoriais. Já os assassinos ensandecidos reviviam eternamente a cena do crime horrendo que marcara o fatídico de seus destinos. Súplicas, gritos, gemidos se orquestravam em vagos lamentos, nas vagas negras do vento, num desarranjo de desarmonias assustadoras e desolativas.

O fato é que eu percebi que não levo jeito para o inferno. Fui andando, e vi figuras humanoides cujo corpo mesclava-se ao corpo de animais: centauros, homens e mulheres serpentóides, sátiros, faunos, esfinges vivas. Tudo ali escancarava a real situação animalesca da paisagem psíquica dos habitantes na barbárie que viveram nos seus dias quando viviam sobre o orbe terrestre.

Realmente, tenho muito pouca experiência com o inferno. Quando pensei em continuar minhas perquirições naquela atmosfera, meu telefone celular vibrou no toque de uma notificação, e aí acordei com o bloquinho de anotações para trazer essa prosa do “lá-embaixo” para vocês.

E, olha, eu sinceramente espero que vocês, também não levem jeito para o inferno. Porque, no fim das contas que fiz esta noite, as comunidades que se formam no “fogo eterno” nada mais são que a união de cabeças confusas num espaço qualquer do éter.

Eu é que não quero voltar pra lá. Vou tratar de fazer caridade. Apanhar com as mãos um punhado de sonhos bons e realizá-los de mãos dadas com os amigos de verdade, e não com aqueles engraçadinhos com quem estive sufocando o mesmo pesadelo.

Veja bem, com esse sonho ainda fresquinho na cabeça, posso escutar ao longe a risada desses “amigos” infernais… eu hein! Jamais! Vou é fazer uma oração. Vai que andei perdido nas emoções e tropecei numa pedra durante o sono e tive essa visita ao zoológico do pós-morte.

Senhor Jesus, livrai-me do mal em mim mesmo. Por favor. Que assim seja.

Arthur da Paz (20 de dezembro de 2025, ainda vivo, graças a Deus)

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