Sumário
Introdução
“Senhor, protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim” (Fernando Pessoa)
Manchete conjuntural desvelada nessa escrita: o cárcere não resume à concretude das grades. A arena do panóptico envolve diferentes prismas e valores humanos, tais como religião e crença, costumes, multiculturalismo. Desde a Antiguidade, as autoridades trabalham essa instituição paradigmática voltada à penalização de corpos, explanada por Foucault (1972), sendo permeada pela fé, o desespero e a lei, atravessados pela realidade sociopolítica, econômica e cultural.
A Cultura agrega Sistemas Simbólicos que trespassam a religião, os costumes e o constructo humano. Por intermédio desses preceitos, o artigo utiliza as lentes e lógica da prisão e seus trâmites. Adentra aos muros, lá dentro, bebe dos fenômenos e bastidores da fé, analisa a força legal do poder de fato, a incessante e lucrativa midiatização das manchetes conjunturais. Enquanto referência e objeto, o estudo caminha o cotidiano do trabalhador enfileirado no empreendedorismo de si mesmo, ferramenta pós-moderna do mercado alavancado pelo exército industrial de reserva.
Análises documentais expõem a estreita correlação entre os direitos cidadãos e a negação estrutural da emancipação humana, desvelam a libertação e seu contrário, a negação da condição humana retratada na reincidência criminal. Essa verdade desemboca no lumpemproletariado instalado na base da pirâmide social, empurrado à submissão penal. Mazela sociopolítica, a restrição da liberdade imposta pelo aprisionamento em massa impulsiona à marginalização e escravização cotidiana e midiática do proletariado.
Na arena cadeia, o fenômeno humano é apresentado nas mais diversas formas de expressão, alas e gêneros recortadas no dualismo feminino x masculino. Esse recorte da realidade trancafiada dá mote a esta investigação enquanto fenômeno do transe coletivo e desespero, ato de clamar ao numinoso pela salvação imediata. O abstracionismo da crença e a luta por libertação das celas fomentam a vida regulada no gueto da exclusão social trancafiada, denuncia a solidão de corpos apenados à violência institucional retratada na jaula destinada a humanos sem face.
Notícia factual da semana: os brasileiros aposentados surrupiados em seu parco recurso mensal, direito mínimo a mantê-lo ‘em pé’ após anos da vida ativa dedicada a recolher impostos e construir a riqueza social, afanados na sua dignidade pela corrupção histórica, endêmica e sem remédio a perfilar o Brasil. Expressivo percentual das políticas públicas revela-se ferramenta estatal de perfil neoliberal voltada a minimizar a relação de conflito do mercado com os direitos constitucionais. Na contemporaneidade, são políticas articuladas à manipulação das expressões da questão social retratadas pela sociedade capitalista consumista movida a fluxo incessante. Antes da cadeia, o que determina a vida precarizada são os mínimos sociais. A sanha coletiva destina ao controle social da classe trabalhadora nascida no caos, acuada na periferia social.
O tempo de modernidade e modismos determina a luta pelo direito de ir e vir, o viver e conviver mal subjugado a regras da condição pós-moderna. As relações humanas capitalistas, materiais, filosóficas, racionais ou não, determinam o irracionalismo formal-abstrato que tem na desigualdade perpetuada viés legal. A consciência do trabalhador resiste à alienação ao capital, atravessa a existência caótica atrelada à trama econômica que aprofunda a mercantilização da vida na sua diversidade.
As relações de produção e reprodução social voltadas ao consumo incessante fomentado por grandes corporações aviltam o trabalhador, o submetem ao desmonte de direitos. Desse modo, a condição existencial das massas perpetua sua vulnerabilidade, acua na estagnação e penalização de corpos que resultam no contingente em larga escala caracterizado por seres humanos sobrantes, os conhecidos lazarentos, parcela periférica escravizada pelo sistema e modo de produção capitalista, gueto apenado à prisão.
A religiosidade: analgésico da alma
A correlação dialética entre religiosidade e loucura humana remete para além dos limites da saúde mental. Os muros do cárcere ou sistema panóptico guardam inúmeros sinônimos e realidades, sonhos e pesadelos advindos do cerceamento da liberdade e fragmentação da dignidade de milhões de sujeitos sob a guarda e regime temporário do poder de fato. Na arena da prisão, a fé alimenta a coexistência do trabalhador condenado às grades, cerceado pelas leis jurídicas determinadas pelo Estado.
Se a pena, assim como a fé, estruturam a manutenção da paz e controle social, há que aprofundar as hipóteses e refletir a realidade expressa no tripé Evangelho, Prisão e Contemporaneidade. O cotidiano no sistema prisional esboça concretude, sujeição e exclusão, campo de alienação temporal. Naquela arena, o poder da crença atenua a histeria coletiva instalada, a reforçar que “se alguém quiser vir comigo, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e siga-me” (MATEUS, 16:24).
Na cadeia, a precarização da dignidade advém das normas e leis implementadas com foco na punição do preso; lá fora, regulado pelo poder do tráfico e violência generalizada, mazelas sociopolíticas e culturais que regulam a cadeia de produção que resulta em mercadorias e apenados.
Por trás das grades impera espécie de normativa vivenciada nas diversas formas que retratam a humanidade em frangalhos. Atenta à promessa da libertação por intermédio da fé e do afago imediato da alma, a pessoa condicionada sobrevive à realidade concreta armada de mente, corpo, razão que descamba na irrazão humana. O tamanho da pena tem alívio calcado nas trilhas da religião abstrata e da vida líquida de Bauman (2004) regulada pelo mercado.
A trama de perfil pós-moderno dá forma à mercadoria-fetiche, impõe, delineia relações efêmeras imediatistas que fazem pulsar o consumo incessante de tudo que o dinheiro produz, reproduz e consome. A cada segundo das horas e eras o sistema capitalista cria novas necessidades humanas. Nos mais diversos lugares renova as guerras, alinhava acordos de paz, expropria recursos materiais, promove a superexploração dos povos subjugados. A mídia fomenta a todo tempo e lugar o caos e a força da mais-valia absoluta extraída do lumpemproletariado, expõe manchetes globais que retratam a miserabilidade humana em ascendência na contramão da elite embranquecida, apequenada, acuada nos aquários sociais denominados condomínios residenciais.
Posto e feito, a crença se mostra capaz de salvar o presidiário, mesmo o suicida, e melhora a vida do cidadão na esperança da libertação, alicerce do sagrado que avisa da necessidade em salvar, ser salvo, salvar-se, perpetuando o discurso religioso estruturado na promessa da salvação. Para tanto, a reflexão sobre os conceitos ligados ao campo santo, sagrado, da salvação, do indene e imune (sacer, sanctus, heilig, holy — e seus supostos equivalentes em grande número de idiomas). Quanto à salvação, Derrida indaga: será “necessariamente a redenção diante ou depois do mal, da falta ou do pecado? Agora, onde está o mal?” (2000, p. 11-12).
O paradigma da vida existencial é simbolizado na solidão humana, penalização do trabalhador pelo explorador como um dos paradigmas que alimentam o capitalismo. À categoria Trabalho, o ato de transformar algo na natureza por intermédio da mente e das mãos humanas, quando o sujeito transforma também a si durante este processo que proporciona a sobrevivência em estreita correlação com a fé.
Atenuar a dor da alma por meio da fé facilita o encontro com o numinoso, forma abstrata de representação da realidade expressa no desespero que fustiga o imaginário da religião amealhada no presídio. Com efeito, segundo Derrida, no entender de Kant — ele diz isso propositadamente [...] a religião de mero culto (des blossen Cultus) procura os ‘favores de Deus’, mas essencialmente, não age, limita-se a ensinar a oração e o desejo ao homem que não tem de se tornar melhor, ainda que seja pela remissão dos pecados (DERRIDA, 2000, p. 20).
A dignidade humana tem estreita correlação com a fé além de outras nuances da vida do trabalhador, labuta essa amalgamada à sua condição sociopolítica, no caso, na condição de apenado ao cárcere.
A condição humana nos meandros da prisão
Ao adentrar aos trâmites e bastidores do poder de fato, retratado no sistema carcerário panóptico, a estrutura da política pública de segurança esbarra na inabilidade do Estado em interferir na desigualdade e injustiça social. A dicotomia expressa entre riqueza acumulada e pobreza extremada resulta na desigualdade social, produz, reproduz e direciona o sujeito infrator, as mais diversas formas de punição corporal enquanto ator social que passa a atuar no palco e arena da prisão.
Para Andrade:
“[...] a ressocialização é um mito e a prisão é um fracasso, se considerarmos que fabrica o criminoso e a criminalidade, ou seja, apresenta uma eficácia invertida. No entanto, realiza funções não declaradas, o que eleva os índices da criminalidade a partir da criminalização da pobreza, o que faz da prisão um sucesso” (2012, s/p).
Determinação histórica e realidade concreta, a lei penal expõe diferenciadas formas de manipulação e punição das dignidades humanas, estreita a correlação com a fé abstrata capaz de amenizar a realidade da cadeia, e revela que a religiosidade é o analgésico da alma. Enquanto fato social, a vida do apenado na cadeia aguarda liberdade patrocinada pela fé e remonta ao que ilustra Michel Foucault, a “um objeto novo que acaba de fazer seu aparecimento na paisagem imaginária da Renascença, e, nela, logo ocupará lugar privilegiado: é a Nau dos Loucos, estranho barco que desliza ao longo dos calmos rios da Renânia e dos canais flamengos” (1972, p. 12-13).
Ao observar os jogos da prisão, trágica conquista humana, constata-se a reificação da cultura expressa no poder de fato, impaciência, violência e medo. Para tanto, cabe à ciência e sabedoria de Frei Betto: “São Paulo diz que a paciência gera a esperança. Se esta é grande, aquela é maior ainda. Daí nossa disposição” (2008, p. 54).
Para o Estado, instituição de poder, a cadeia é lugar privilegiado na promoção da mudança radical por meio da metanoia, a qual pode induzir à koinonia. Foi esta arena que forjou São Paulo apóstolo e seus incontáveis discípulos, mártires, místicos, explicado também pelo preso político Frei Betto: “Nela, vemos a vida como o negativo da foto, não a revelação em cores, sob o jogo de luz que, muitas vezes, cria falsa imagem do real, mas o que é diretamente captado do real e só nele é plenamente visível” (1969-1973, p. 29).
Para o Estado, instituição de poder, a cadeia é lugar privilegiado na promoção da mudança radical por meio da metanoia, a qual pode induzir à koinonia. Foi esta arena que forjou São Paulo apóstolo e seus incontáveis discípulos, mártires, místicos, explicado também pelo preso político Frei Betto: “Nela, vemos a vida como o negativo da foto, não a revelação em cores, sob o jogo de luz que, muitas vezes, cria falsa imagem do real, mas o que é diretamente captado do real e só nele é plenamente visível” (1969-1973, p. 29).
Inúmeros fatores sociopolíticos e econômicos criminalizam a coletividade. Expressa a pobreza a mazela social resultante da insuficiência orçamentária (salarial) do indivíduo em seu poder de compra, impõe a miséria convivida à margem da sociedade. O coletivo ‘tem sua alma’ dividida entre a boa índole e a facção criminosa, alheio à divisão da riqueza social desalinhada dos direitos humanos expressos na economia, campo político material-imaterial-cultural.
Os trabalhadores inseridos no exército ou mercado industrial de reserva são parte da logística do sistema de produção e reprodução das relações sociais capitalistas-selvagens-excludentes. De acordo com Carlos Nelson Coutinho (2010), filósofo político, acabam por sobreviver alienados à desumanização da sociedade, movidos pela fé e sorte da crença no abstrato, maior até que a certeza da concretude exposta na sua miséria da razão.
Sob a ótica dos discursos de Saulo — transformado em Paulo — a religiosidade estrutura a cultura e os sistemas simbólicos, dá respostas à razão-desrazão moderna estampada na instituição prisão. Desde os dias em que o apóstolo se tornou um convertido,
“[...] construiu uma comunidade muito viva mas cheia de problemas, pois era composta de judeus com suas tradições rigorosas e de coríntios pagãos, conhecidos por sua permissividade e lassidão, quando a grande maioria era de pobres, mas havia também convertidos de melhor condição cultural e social” (BOFF, 1999, p. 8).
Como naqueles tempos, o homem contemporâneo pode ser admirável a partir do discernimento quanto ao seu poder de consumo.
Reflexão posta, a razão sugere:
“(...) um sistema orgânico de reprodução social metabólica, dotado de lógica própria e de um conjunto objetivo de imperativos, que subordina a si — para o melhor e para o pior, conforme as alterações das circunstâncias históricas — todas as áreas da atividade humana, desde os processos econômicos mais básicos até os domínios intelectuais e culturais mais mediados e sofisticados” (MÉSZÁROS, 2004, p. 16).
Do contrário, o sujeito passa a integrar o lote dos excluídos dessa competição, manchete histórica imposta pelo neoliberalismo globalizado. Essa que retrata milhões de sujeitos sem face, os “sobrantes” na concepção do pensador húngaro Mészarós (2005). Crise social definida pela estrutura político-econômica articulada, que submete o corpo social à precarização da qualidade de vida, claramente, a partir da produção e reprodução do cotidiano.
“Em todos os seus aspectos. Dos mais coletivos, como a desagregação dos centros urbanos e a militarização dos conflitos sociais, até os mais individuais. Os elementos de continuidade deixam de ser acumulação da riqueza; para ser a própria crise enquanto tal” (LESSA, 2007, p. 104).
A lógica da Era Contemporânea em seu rigor formal exige dos explorados reprogramar a si e seu mundo, suas relações sociais.
O cárcere: alienação e loucura, anacronia e marginalização
A condição coletiva de classe social achatada pelo capitalismo tardio instala o ‘precariato’ na periferia, base da pirâmide social a qual respira mínimos sociais. Esta nova categoria caracteriza a escravização pós-moderna, em pleno século XXI, de acordo com Bauman (2016). O cotidiano sociopolítico tem correlação com a realidade econômico-cultural mundializada.
Assim, a reflexão se faz necessária.
“Não é por meio de iniciativas isoladas de esforços generosos ou com homens carismáticos que construiremos um mundo melhor, o que é uma tarefa a ser assumida pela coletividade que aspira um lugar melhor, pois é difícil aprender a nadar sem se jogar na água” (BETTO, 2008, p. 54).
Em seu rigor formal, a lógica do mundo contemporâneo exige de cada ator social reprogramar-se. A alma permeia os meandros da prisão, enfrenta a instabilidade enlouquecedora forjada no estruturalismo e funcionalismo da cadeia. Lado a lado com a miséria da razão, o fenômeno explicado por Derrida, da “mundialatinização - estranha aliança do Cristianismo, como experiência da morte de Deus, com o capitalismo teletecnocientífico - hegemônica e finita, superpoderosa e em vias de esgotamento” (2000).
Os que se comprometem com tal supervalorização da fé e do sagrado, em função do lucro, status e poder, levam os mais céticos a refletir tal confiança. A questionar se “não será loucura, a anacronia absoluta de nosso tempo, a disjunção de toda contemporaneidade de si, o dia velado de todo presente” (Idem, 2000, p. 23).
Tomando por base o princípio de que o núcleo central na vida de Jesus não foi a religião, mas a missão de humanizar o Mundo, o teólogo espanhol María Castillo destila a crítica conjuntural apontando que “mais do que com a religião, deveríamos nos preocupar com a saúde, a alimentação e as relações humanas porque Jesus não fundou uma igreja, inaugurou uma nova maneira de convivermos” (2017).
Enquanto o teólogo-filósofo Leonardo Boff avisa que “cada um lê com os olhos que tem e interpreta a partir de onde os pés pisam”, o ato de ler significa reler e compreender, interpretar a dependência do homem aos símbolos e sistemas simbólicos. Com relação à reflexão teológico-filosófica, essa, na perspectiva da Antropologia Interpretativa de Geertz, parece decisiva “para que o próprio ser humano seja viável enquanto criatura” (1989, p. 73).
A história, na Bíblia Sagrada, relata São Paulo apóstolo, primeiro teólogo judeu a converter-se ao Cristianismo, que entregou-se à luta pela melhoria da situação sociocultural dos gentios. Esta decisão, causada por motivos pessoais que abalaram suas convicções religiosas, o fez enfrentar, pelas vias da fé, “prisões, torturas e naufrágios, fome, frio, nudez e muitas ameaças de morte” (2 Cor 6,4 ss; 11,23-3; 12,15, apud BOFF, 1999, p. 7).
Para Leonardo Boff, teólogo e escritor brasileiro, o apóstolo Paulo é a voz dos menos favorecidos sujeitados à desigualdade e injustiça social. Transportada aos dias conjunturais, a mazela denuncia a queda da classe média à arena econômico-política retratada na contradição social. Esta realidade submete os trabalhadores, revela-se classe e categoria da qual Paulo avisava ser o experimento da penúria condenado a ter vida curta.
É no espaço de restrição da liberdade na prisão que o poder de fato, braço do Estado, coage e normatiza, regula o ser social “em desacordo com as leis dos homens” (BOFF, 1999). Por detrás das grades o trabalhador encontra seu homem interior, em toda sua dimensão. Enquanto isso, seu ser exterior é reduzido ao pequeno espaço da cela moldada a cimento, grades e acuo da consciência.
A escravização moderna revela a velha luta desigual travada pelos oprimidos que enfrentam a violência dos “opressores, violentando e proibindo que os outros sejam”, igualmente, “os oprimidos, lutando por ser”, os quais “ao retirar dos opressores o poder de oprimir e de esmagar, lhes restauram a humanidade que haviam perdido no uso da opressão”, segundo Leonardo Boff (1999, p. 46).
Embora a preocupação do legislador penal em evitar a penalização à cadeia, Jales Perilo afirma ser “inegável a falência da pena da prisão”, ao tratar da ultrapassada visão da punição privativa de liberdade como meio mais eficaz para o combate à criminalidade. E, com referência a tal expressão social, reflete que “as ‘Regras de Tóquio’ tiveram, sem dúvida, enorme influência na política criminal brasileira, notadamente, na adoção de penas alternativas, de modo a se evitar o encarceramento, medida reconhecidamente danosa ao apenado” (2016, p. 118).
Ao exercer profunda influência sobre a ordem genuína da realidade envolta em ambiguidades, a religião torna forma abstrata a dar respostas às mazelas impostas pela miserabilidade humana engendrada pelo mundo real. Como que a espelhar-se na prisão, “Geertz aponta a dependência do homem aos símbolos e sistemas simbólicos. Eles parecem ser decisivos para que o próprio ser humano seja viável enquanto criatura” (apud ECCO e ARAÚJO, 2015, p. 3).
Sobre o caos que ameaça o homem acuado na prisão, Geertz aponta enquanto pontos cruciais “os limites de sua capacidade analítica; seu poder de suportar; e, a introspecção moral” (1989), além, é claro, do axioma básico da perspectiva religiosa de que “aquele que tiver de saber precisa antes acreditar” (1989, p. 80-81, apud ECCO e ARAÚJO, 2015, p. 3-4).
Não é certo se Paulo apóstolo tomou desse preceito ao pregar: “Ai de mim se eu não anunciar o Evangelho” (1Cor 9, 16). Desse modo, resta ao homem moderno, consumista e individualista, roubado em direitos e tempo de ócio, enfrentar a realidade caótica, violenta, injusta, fundada na meritocracia. Mais, acreditar e refletir, assim exposto por Derrida, se “não será a loucura, a anacronia absoluta de nosso tempo, a disjunção de toda contemporaneidade de si, o dia velado de todo presente” (2000, p. 23).
A luta pela sobrevivência é estreitada por relações materiais-filosóficas, concretas e abstratas, alicerce da consciência que resiste à alienação capitalista.
Assim sendo...
O ato de sobreviver estreita as relações humanas enquanto paradigma e manchete histórica, exige consciência e capacidade em resistir às diferenciadas alienações impostas ao homem contemporâneo nivelado a partir do poder de consumo capitalista selvagem. A cultura e os sistemas simbólicos bebem da religião, dos costumes, implementam políticas públicas voltadas a amenizar variadas expressões da questão social.
A desigualdade e a injustiça social desvelam a realidade na qual, em assimetria, o desespero e a fé acuam o trabalhador enquanto ser humano condicionado por normas. Alojada e acuada na periferia, a criatura, viável ou não ao sistema, é submetida ao incessante consumismo e ao caos que a fragmenta enquanto ser humano político desumanizado, órfão de direitos.
A velha escravidão, modernizada, levada a cabo é torniquete da loucura instalada, em última instância a ser trancafiada nas alas do presídio. É ali que instiga o fenômeno do transe coletivo a gritar em desespero pela esperança da salvação. Pelo viés da crença, o fenômeno do alívio temporário da pena à exclusão na prisão.
O controle social vigia e pune a caótica situação humana subjugada aos intramuros do sistema panóptico. O modo de vida retratado na alienação moderna escancara a luta desigual entre homens historicamente desiguais, a opressão perpetua a partir do poder de consumo. A violência dos opressores expropria dignidades, condiciona o clamor do lumpemproletariado por sobras da humanidade.
Embora a preocupação do legislador jurídico em evitar a pena privativa de liberdade, “inegável é a falência da pena da prisão”, atesta o pesquisador Jales Perilo (2016). Ao tratar da ultrapassada visão de que a privação da liberdade venha a ser o meio mais eficaz no combate à criminalidade e manutenção da ordem, em um mundo envolto por ambiguidades, a religião representa forma abstrata capaz de propiciar respostas às mazelas da desigualdade social imposta à realidade concreta.
A lógica jurídico-penal dá mote ao Estado e mercado ao adotar a privação da liberdade ao tempo em que revela ser incapaz de resgatar a dignidade do aprisionado. O cárcere não ressocializa nem liberta o aprisionado das pendências jurídicas. A falência da inclusão, promessa do pós-prisão nos dias atuais, entrega que o sistema panóptico criado por Jeremy Bentham, em 1785, perpetua sua condição histórica enquanto gueto destinado a grande contingente de sujeitos vitimados pelas mazelas humanas resultadas da convivência desigual e violenta do homem com o próprio homem.
Finalizando essa escrita, sem pretender encerrar o tema da Instituição Prisão: arena paradigmática e manchete histórica, recortado nesse tópico, abordado na Na prisão a fé alivia a alma penada, e com relação à realidade sociopolítica, econômica e cultural, repasso o que afirma Frei Betto no seu livro Cartas da Prisão, de que “não é por meio de iniciativas isoladas de esforços generosos ou com homens carismáticos que construiremos um tempo melhor, o que é uma tarefa a ser assumida pela coletividade que aspira um Mundo melhor, pois é difícil aprender a nadar sem se jogar na água” (2008, p. 54).
Na práxis, são os fatores históricos que causam a marginalização da coletividade. Retratada na sua realidade de pobreza, mazela social imposta, a decadência coletiva resulta da insuficiência orçamentária salarial, do poder de compra minguado, da inserção por meio do milagre, da sua condição social de classe instalada à margem da sociedade, muitos na prisão, gueto retratado em números ascendentes dos divididos por entre as alas da boa índole e da facção.
E o pulso, ainda pulsa!
Referências
BAUMAN, Zigmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar. 2004.
BETTO, Frei. Cartas da prisão: 1969-1973. Rio de Janeiro: Agir, 2008.
BOFF, Leonardo. Coríntios. Rio de Janeiro: Vozes, 1999.
COUTINHO, Carlos Nelson. O Estruturalismo e a Miséria da Razão. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
DERRIDA, Jacques. A religião: o seminário de Capri. São Paulo: Ed. Estação Liberdade, 2000, p. 11-35.
ECCO, Clóvis e ARAÚJO, Cristiano S. A religião e o sagrado nas dobras de poder. Revista Contemplação, vol. 10, p. 1-15. 2015.
FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. Petrópolis-RJ: Vozes, 1972.
LESSA, Sérgio. Lukács: Ética e Política. Chapecó: Argos, 2007.
MÉSZÁROS, István. A Teoria da Alienação em Marx. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005.
PERILO, Jales. A odiosa pena da prisão. Goiânia: Ed. Kelps, 2016.
Termos e Links acessados:
Panóptico: conceito desenvolvido por Jeremy Bentham, no século XVIII, que descreve uma forma de prisão ideal onde um único vigilante pode observar todos os prisioneiros sem que eles saibam se estão sendo observados.
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Metanoia: termo grego, significa conversão, mudança radical de mentalidade, atitude. (TANJAN, 2018; https://robertotranjan.com.br/sabe-o-que-e-metanoia)
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Koinonia: termo grego, significa comunhão dos homens, mecanicamente compartimentada, passivamente aberta ao mundo que a irá ‘enchendo’ de realidade” (FREIRE, 1977, p. 71).
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Zygmunt Bauman: “As redes sociais são uma armadilha”: https://brasil.elpais.com/brasil/2015/12/30/cultura/1451504427_ 675885.html
Revista eletrônica Religión Digital, 14 de julho de 2017: https://www.periodistadigital.com/religion/opinion/2017/05/15/ jose-maria-castillo-en-la-iglesia-en-los-seminarios-en-los-centros-de-estudios-teologicos-hay-miedo-mucho-miedo-iglesia-religion-dios-jesus.shtml