Sumário
A história mais detalhada do mito de Narciso vem do Livro III, da obra Metamorfoses, de Ovídio. Narciso é retratado como um caçador de imensa beleza, filho da ninfa Liriope e do rio Cefiso. Ele é objeto de uma profecia proferida pelo adivinho Tirésias, a quem Liriope consultou a respeito do seu filho: Narciso viverá muito tempo “se não se conhecer”.
Esse augúrio curioso ganha todo o seu sentido quando se conhece o desfecho da história: certo dia, exausto após uma caçada penosa, ele decide repousar na relva, próximo a um ponto de água. Foi ali que, ao tentar beber, avista seu próprio reflexo, do qual não consegue desviar o olhar:
“Sem se dar conta, ele se ama; ele é ao mesmo tempo o amante e o amado. (...) Quantas vezes ele oferece beijos vãos a essa fonte ilusória! Quantas vezes, para alcançar seu pescoço que via no meio das águas, mergulhou seus braços, sem conseguir se tocar! O que vê? Eu não sei; mas o que vê o consome.”
Incapaz de fazer outra coisa senão se contemplar e tentar abraçar seu próprio reflexo, ele definha e acaba por se transformar em flor. A moral da história parece ser evidente: é preciso evitar um amor desmedido por si mesmo, preferindo direcionar nossa admiração para o outro.
Embora seja um dos personagens mais famosos da mitologia greco-latina e, mesmo com o tema do “narcisismo” florescendo nos dias de hoje, poucos textos antigos fazem referência a Narciso. Além das Metamorfoses, é sobretudo através da escultura e da pintura — especialmente a partir do Renascimento — que sua figura se desenvolve, e foi realmente somente no século XX que passou a interessar à psicologia.
Sigmund Freud, em particular, desenvolveu o conceito de “narcisismo” na década de 1910, estabelecendo uma distinção entre um narcisismo “primário”, estágio normal do desenvolvimento infantil durante o qual a criança se vê como objeto de desejo, e um narcisismo “secundário”, estágio propriamente patológico no qual o adulto não conseguiu ultrapassar essa fase infantil e projetar seu desejo para o exterior.
Nascido no âmbito da psicologia, o conceito foi gradativamente ganhando espaço nas ciências sociais. Em 1979, o sociólogo e historiador americano Christopher Lasch incorporou-o em La Culture du narcissisme (A Cultura do Narcisismo). Aos seus olhos, o capitalismo moderno gerou uma nova personalidade narcisista.
Assim como em Freud, essa personalidade se caracteriza por uma confusão entre o eu e o não-eu. Este Narciso contemporâneo, rejeitando o passado e imerso na pulsão consumista, não enxerga além do curto prazo, da publicidade e das mercadorias — a ponto de se confundir com elas, num “sentimento de inautenticidade e vazio interior”.
Essa confusão, que alimenta uma ansiedade existencial, o impulsiona a buscar a confirmação de seu valor no olhar dos outros. No fim, o outro existe apenas para ser contemplado.
O sucesso das academias, dos selfies e das redes sociais parece hoje ecoar como uma curiosa confirmação dessas teses formuladas há mais de quarenta anos. Daí, sem dúvida, o uso massivo do termo “narcisismo”.