Instituto Santa Dica
Em Lagolândia, pequeno distrito de Pirenópolis, no interior de Goiás, nasceu em 1905 uma figura que transcenderia o tempo: Benedicta Cypriano Gomes, mais conhecida como Santa Dica. Em abril deste ano, o povoado celebrou os 120 anos de seu nascimento. Em meio a esse resgate histórico e simbólico, o Jornal Opção conversou com Lucília Amaral, presidente do Instituto Santa Dica, que lidera um movimento para preservar a memória de Dica, promover justiça ambiental e desenvolver um modelo de turismo comunitário e sustentável para o local.
Santa Dica não foi uma santa canonizada, mas sua influência foi tão profunda que o local onde vivia ficou conhecido como “República dos Anjos”. Diziam que ela recebia mensagens divinas, curava enfermos e mediava conflitos.
Inspirada pela trajetória da santa popular, Lucília decidiu transformar a admiração coletiva em uma estrutura organizada. “Cada um teve uma relação com Santa Dica. No meu caso, foi nos estudos para concurso, mas principalmente na época do governo municipal do Pedro Wilson, ele fez uma revistinha chamada Santa Dica, com toda a programação cultural, isso nos idos do ano 2000”, contou ela. Na juventude, frequentava os eventos do “Terça Tem Canja” promovidos pela Secretaria Municipal de Cultura e, desde então, passou a conhecer e se encantar com a história da mística de Lagolândia.
A iniciativa de criar o Instituto surgiu de um grupo comprometido com a atuação em diferentes áreas. “Foi de um determinado grupo, falamos ‘Vamos montar uma institução? Vamos trabalhar com essas especialidades? Vamos trabalhar com o nome Santa Dica?’ Eu, o Felipe Matos, analista de cultura e advogado, a Renata Ribeiro, tatuadora, e o Felipe César, recreador e professor de hip hop, todos continuam no Instituto Santa Dica”, relatou Lucília. A organização se consolidou com uma proposta multidisciplinar: são 55 membros, especialistas em áreas como direitos humanos, meio ambiente, patrimônio histórico e educação.
Durante a criação do Instituto, o grupo teve o apoio decisivo de Álvaro, um filósofo com visão ampliada sobre meio ambiente. “Ele trouxe o termo justiça ambiental, que trata desde a justiça climática ao saneamento básico, até a restauração ambiental”, explicou Lucília. Essa abordagem mais ampla foi fundamental para estruturar o Instituto Santa Dica não apenas como um guardião da memória de Benedicta, mas também como agente de transformação social e ecológica em Lagolândia.
Entre os principais projetos da organização está a criação de um memorial dedicado a Santa Dica no próprio espaço onde ela viveu e acolheu a comunidade. “Tem a Casa de Santa Dica e uma outra casa que foi devastada pela enchente e a gente tem que ver quem é o dono, o que vai fazer, se pode fazer esse memorial […] Tem também o salão de curas de Dica, um lugar onde os doentes ficavam deitados. E tem a cozinha de Dica. Além da cozinha, tem o fundo, que é a varanda, com os fornos onde são feitos os doces”, relatou Lucília. A ideia é transformar a antessala ampliada da casa em um memorial com livros, uma televisão e espaço de visitação, desde que com o aval dos familiares e da comunidade.
Com foco no protagonismo feminino, o projeto também prevê a formação de mulheres locais para atuar como guias do espaço. “Nosso foco também são as mulheres se responsabilizarem por receber essas pessoas na casa de Dica, mostrar esse memorial”, afirmou a presidente do Instituto. Para isso, cursos de capacitação estão em pauta, sempre com base no respeito à identidade local e na proteção do patrimônio.
Outro ponto da atuação do Instituto é a oficialização do Caminho de Santa Dica, percurso de importância histórica e simbólica. Segundo ela, a deputada federal Adriana Accorsi (PT-GO) passou a integrar o esforço coletivo após um encontro casual durante a Expedição Meia Ponte.

Outro ponto da atuação do Instituto é a oficialização do Caminho de Santa Dica, percurso de importância histórica e simbólica. Segundo ela, a deputada federal Adriana Accorsi (PT-GO) passou a integrar o esforço coletivo após um encontro casual durante a Expedição Meia Ponte.
“Ela não tinha esse contato direto com o Santa Dica, mas ali eu pude apresentar a proposta, fazer uma introdução. Desde então, temos mantido um diálogo próximo. Semana passada mesmo consegui falar com ela, e ela vai nos apoiar nesse processo. Vai agendar uma reunião com o IPHAN, e, assim que isso acontecer, vamos entrar com um ofício para o Fabrício Amaral, da Goiás Turismo, para oficializarmos de fato esse caminho”, afirmou.
“Ela não tinha esse contato direto com o Santa Dica, mas ali eu pude apresentar a proposta, fazer uma introdução. Desde então, temos mantido um diálogo próximo. Semana passada mesmo consegui falar com ela, e ela vai nos apoiar nesse processo. Vai agendar uma reunião com o IPHAN, e, assim que isso acontecer, vamos entrar com um ofício para o Fabrício Amaral, da Goiás Turismo, para oficializarmos de fato esse caminho”, afirmou.
Lucília destacou que o apoio de Adriana Accorsi tem sido fundamental, especialmente pela atuação da parlamentar na pauta ambiental. “Ela sempre está presente e tem sugestões e projetos de lei também dessa área ambiental então eu quero essa presença dela”, reforçou.
No entanto, o Instituto age com cautela. “Lagolândia é um lugar muito especial, paradisíaco, com 500 moradores, e a gente não quer o boom que existe em Pirenópolis”, alertou Lucília, relembrando os tempos em que a cidade vizinha era tranquila, antes de se transformar em um polo turístico massificado. “Agora está muito cheia, moradores de rua, criminalidade. A gente não quer que isso aconteça em Lagolândia.”
Desde a visita técnica realizada com o IPHAN em 2023, o Instituto Santa Dica tem evitado ações precipitadas que possam comprometer a integridade ambiental e cultural do território. A ideia, portanto, é investir em um modelo de turismo verdadeiramente ecológico, de base comunitária, que envolva diretamente os moradores. A intenção é formar guias locais e promover a valorização dos saberes da comunidade.
“Você vê uma festa do doce em que o povoado recebe 5 mil pessoas e fica lotado, mas tem desordem e falta de estrutura”, apontou Lucília, enfatizando a importância de um planejamento cuidadoso.
O cuidado com o perfil do público visitante também é algo que permeia toda a fala de Lucília. A estratégia, segundo ela, passa por uma comunicação seletiva e criteriosa. “Até mesmo as mídias, a gente tem que ser prudentes com quem que a gente vai atrair. […] Brasília, o Distrito Federal ali, já conhece esse caminho de Santa Dica, eles fazem um movimento de bike […]. São pessoas muito conscientes e eles divulgam entre si”, afirmou, fazendo um paralelo com o antigo funcionamento do Mosteiro Zen Budista Eisho Ji, que atraía visitantes apenas por meio de mapas manuais, justamente para garantir que o público fosse alinhado com os valores do local.
A oficialização do Caminho de Santa Dica, segundo Lucília, permitiria acessar recursos e mecanismos de divulgação já existentes no aparato governamental, mas sem perder o controle sobre a identidade do projeto. “A questão do caminho de Santa Dica, em relação aos apoios da Goiás Turismo, por exemplo, vai passar mais por essa questão da imprensa governamental mesmo. […] Só que a gente não quer, porque, por exemplo, o Caminho de Cora é um grande percurso e atrai gente de todo mundo. A gente não quer um grande percurso que atraia gente de todo mundo. A gente quer um percurso muito bem elaborado que atraia pessoas conscientes de todo mundo.”
O cuidado com o meio ambiente também está no centro das preocupações do Instituto. A região tem uma arquitetura colonial centenária, com destaque para a igreja e a antiga casa da prefeitura, de 1935. Além disso, o Rio do Peixe, que corta o povoado, sofre com a ausência de mata ciliar. “Isso tem que ser fiscalizado. Quando a gente passa pelo povoado e vai para a rodovia 479, que foi invadida pela enchente, o rio já está cerceando a estrada. Se alguém passar de forma imprudente, pode cair”, alertou a presidente.
A restauração ecológica do entorno, com sinalização adequada e reflorestamento das margens, é uma das demandas do Instituto junto à Agência Goiana de Infraestrutura.
Lucília também criticou a fragilidade da legislação ambiental brasileira, apontando que o país precisa rever urgentemente os percentuais de preservação legal. “A gente está passando da hora […] do desmatamento zero. Por quê? A gente está próximo ao ponto de não retorno, se já não chegou nele”, alertou. Para ela, uma virada só virá com mobilização nacional: “Eu acredito que toda a sociedade organizada, junto em todo o país, a gente consiga abalar um congresso ruralista na hora que eles veem que tem todo o país exigindo um desmatamento zero, não com 80%, por exemplo […] que seja o contrário, que seja 80% de preservação e 20% de desmatamento.”
A preservação ambiental, o respeito à história e o envolvimento da comunidade são os pilares de uma proposta que vai além da memória de uma mulher notável. O legado de Santa Dica, afinal, se atualiza por meio da ação coletiva e da valorização de seu território. “Encontrar uma proposta de cuidado como o Instituto de Santa Dica, para mim é completamente uma realização de um sonho”, concluiu Lucília.
Revolucionária e Mística de Cura
Cerca de 500 famílias, segundo uma série de depoimentos, viviam ao redor da Casa da Cura, onde Dica vivia, na Lagoa, povoado às margens do Rio do Peixe, rebatizado por ela de Rio Jordão. Era o centro das festas do Divino e de São João, tradições do período colonial nos sertões goianos, promovidas por Dica, que inovava com ritos e símbolos de uma nova religião. Autoridades começaram a questionar os riscos sanitários de um lugar sem condições para atender a população que chegava para as festas.
Diante das reações contrárias de padres e coronéis da região, Dica colocou seu exército à disposição da oligarquia estadual de Totó Caiado, aliado do Palácio do Catete desde 1912, para engrossar, em 1924, a resistência à Coluna Prestes na cidade de Goiás, a 167 quilômetros de Pirenópolis. O Exército dos Anjos não chegou a enfrentar os tenentistas, mas voltou para o vilarejo da Lagoa mais influente. Em reação, a Igreja Católica publicou em seus jornais que Dica era “prostituta”, “histérica” e “tresloucada”.
As romarias de sertanejos para vê-la tinham reduzido o número de devotos da Festa do Divino Pai Eterno, promovida pelos padres em Trindade. O jornal Santuário de Trindade defendeu a destruição do reduto de Dica. “Já se viu tamanha asneira! É o caso para a polícia intervir se não quiser uma repetição de Canudos.” Outro periódico, O Democrata, bancado pelos coronéis, chamou Dica de “Lenine do sexo diferente” e “Antônio Conselheiro de saias”, acusando-a de charlatanismo e prática ilegal da medicina. “Canudos é de ontem, e nós sabemos o que foi Canudos!”, advertiu.
Os textos dos jornais foram recuperados pela historiadora da Universidade de Brasília Eleonora Zicari Costa de Brito, autora da tese “A construção de uma marginalidade através do discurso e da imagem: Santa Dica e a corte dos anjos”. Eleonora recuperou um depoimento da líder sertaneja durante o processo do Dia do Fogo. A historiadora observa que, à época, era “reservado à mulher o silêncio em todos os campos discursivos”. “(Ela) arrisca-se na tentativa de se fazer ouvir nesse campo onde os ouvidos e vozes são masculinos. Sobre seu discurso todos silenciam, até seu advogado.” Na declaração, Dica nega, por exemplo, que tenha rebatizado o Rio do Peixe de Rio Jordão.
Um dos raros documentos sobre a chegada dos militares para atacar o povoado de Dica está no cartório de Pirenópolis. Carta do primeiro-tenente Benedicto Monteiro ao chefe de polícia do Estado, Celso Calmon, de 21 de outubro de 1925, anexada ao processo-crime de Dica, cita as mortes por “fogo”, isto é, à bala, dos “fanáticos” José Gomes Cypriano (tio de Dica), Manuel dos Anjos, José Bellos, Manuel Rosa de Oliveira, Cordeiro de Faria e Jacintho Pires Novato. O documento cita também cinco mortos na “água” - seguidores de Dica que tentaram atravessar o Rio do Peixe: Ambrosina Rocha, uma mulher chamada Perolucia, um homem conhecido por Jacob, Manuel Sant"Ana e Adelino Borges.
Trabalho servil
À época, Goiás era um Estado pouco povoado e com uma das receitas mais baixas do País. A capital não chegava a ter 10 mil habitantes. O tempo do ouro era um capítulo do passado. Famílias que construíram casarões ainda nos anos da mineração mantinham sua influência com o apoio aos parlamentares aliados do governo federal e à custa de trabalho servil em suas propriedades decadentes. Doenças de chagas e beri-béri atingiam as cabanas de palhas e casas de pau-a-pique das beiras de rios e córregos. Os soldados do exército de Dica vieram da pobreza, da fome e do trabalho quase escravo das fazendas.
Não é possível afirmar que existe algum participante do Dia do Fogo ainda vivo. Na história oral do antigo povoado da Lagoa, porém, um morador recluso e de pouca conversa é apontado como ex-integrante do grupo armado de Dica. Trata-se de Manoel Sebastião de Souza, o Manoel Malaquias. Um documento de identidade recente indica que ele tem 80 anos. Os vizinhos afirmam que ele tem mais de 95 anos. “Do fogo eu não sei contar nada. Eu não me implico com essas coisas, não”, diz. O medo da polícia ainda é vivo na comunidade. “Não vou dizer que o Manoel Malaquias participou ou não porque não quero incriminar ninguém”, diz o vizinho Francisco Araújo, 84 anos.
A moradora Durvina de Oliveira, a dona Vita, 85 anos, diz que, com certeza, um irmão de Malaquias, Benedito, estava no Dia do Fogo. Benedito, morto nos anos 1990, era casado com uma irmã dela. Vita diz se lembrar do dia em que "Madrinha Dica", depois de sobreviver ao ataque policial, ser condenada e liberta, resolveu atender a outro pedido do governo estadual para reforçar uma tropa enviada a São Paulo para combater os revoltosos de 1932. "Eu era menina. Lembro que não ficou homem aqui."
A professora Waldetes Aparecida Rezende, moradora de Lagolândia, dá mais detalhes da história dos Malaquias. No livro Santa Dica: História e Encantamentos, publicado no ano passado, ela conta que, em 1950, Dica recebeu ameaças do comerciante José Mendonça Sobrinho, o Zezinho. Ao ser informada da chegada de um grupo de jagunços para matá-la, ela convocou Benedito e outros homens para esperar os inimigos na beira de uma estrada. Benedito atirou e matou Zezinho. Dica foi presa. A família de Zezinho mandou 20 jagunços matar Pedro, filho de Dica.
Ataque
"Não sei se era de Deus ou do demônio, eu sei que ela tinha o dom do profeta", afirma Bernarda Cypriano Gomes, 82 anos. A única irmã viva de Dica frequenta uma das muitas igrejas evangélicas que proliferaram em Pirenópolis nas últimas décadas, novas adversárias do culto à Santa do Rio do Peixe. Bernarda diz que o movimento religioso em Lagolândia começou com o nascimento da irmã, em 1906, na fazenda Mozondó. "Ela nasceu às 3 da tarde. Foi chorar só as 8 da noite. Nasceu de novo", conta. "Mais tarde, vi minha irmã morta muitas vezes. Ela podia ser jogada no fogo, mas não queimava", ressalta. "Pode ser divino, pode ser diabólico, pode ser da luz, pode ser das trevas, mas ela tinha mesmo poderes.
"O processo-crime do Dia do Fogo inclui um depoimento atribuído a Dica em que ela diz ter sido "desonestada" - violentada sexualmente enquanto dormia - por um seguidor conhecido por Cocheado. Nos depoimentos obtidos pelo Estado em Pirenópolis, Cocheado aparece como "apaixonado pela madrinha". Foi ele quem teria salvo Dica, ajudando-a a atravessar o Rio do Peixe quando ela era atacada e caçada pelos policiais. "Quatorze balas bateram na barra do vestido de minha irmã, mas voltaram sem causar ferimentos", diz Benedita.
A moradora Floripa Araújo da Silva, 82 anos, construiu, em homenagem a Dica, uma capela no alto de um dos morros em volta de Lagolândia, onde em 1925 os policiais montaram trincheira. Ali existia décadas antes uma outra capela frequentada por seguidores de Dica. Floripa conta que um dia apareceu um círculo no cerrado feito pela "serpente enganadora do mundo". "Dica juntou 12 homens e foi lá", diz.
A repressão ao povoado naquele outubro de 1925 não acabaria com a crença no mito de Santa Dica. Por mais de 50 anos, ela recebeu em sua casa no centro de Lagolândia devotos vindos dos mais distantes sítios e povoados dos sertões de Goiás. Ali, fazia cirurgias espirituais, pedia aos anjos a cura de doentes e distribuía um óleo considerado milagroso pelos fiéis, feito com essências do Cerrado. A fama chegou aos grandes centros. A mulher acusada de se opor à civilização, nas palavras dos adversários, teve os traços do rosto desenhados pela pintora modernista Tarsila do Amaral e os feitos descritos em poema por Jorge de Lima.
Dica desfez seu exército de homens armados, mas não abandonou a política. Ela elegeu o marido, o jornalista Mário Mendes, prefeito de Pirenópolis, nomeou aliados para cargos fictícios de subdelegado de Lagolândia e apoiou e se opôs a candidatos nas eleições municipais e estaduais.
Ela morreu em 1970, em consequência da doença de Chagas, num hospital de Goiânia. O corpo de Dica foi enterrado na sombra de uma gameleira plantada em frente à casa de Lagolândia, com a cabeça voltada para a igreja do povoado. A casa de taipa e chão batido ainda recebe devotos de Santa Dica, que tem à disposição dois grandes quartos com oito camas cada. Os pacientes não pagam pelas cirurgias espirituais.
"Hoje, operam aqui os mesmos anjos da época da madrinha", afirma Divina Soares da Silva, 60 anos, responsável há 24 anos pela casa. Divina é tratada por devotos que ainda buscam milagres em Lagolândia como sucessora de Santa Dica. Divina diz que o trabalho desenvolvido na casa não pode ser confundido com espiritismo kardecista ou candomblé. "As pessoas daqui são as mesmas da Igreja Católica. As duas coisas combinam muito bem", afirma. "Tudo o que aconteceu aqui eu sei, mas não gosto de falar", diz, num clima de mistério. Ela critica os evangélicos: "Estão se assenhoreando de um povoado que foi criado pela madrinha Dica com orientação dos anjos."