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INFLUÊNCIA INTELIGENTE TODO DIA

“Alucinoses” cotidianas: os aspectos psicóticos da personalidade que insistimos em negar

O psicanalista Edson Manzan Corsi traça um panorama das manifestações cotidianas de psicose, mostrando como a chamada alucinose pode operar, de modo sutil e defensivo, nas tramas da vida afetiva, social e intelectual. Todos os dias!

Dissonâncias internas: entre o peso da realidade e as distorções psíquicas que buscamos para nos proteger da dor.

A partir de minha experiência clínica e de uma dedicação crescente ao estudo da obra de Wilfred Bion (foto à direita), psicanalista britânico de notável originalidade teórica, compreendo que os aspectos psicóticos da personalidade são aqueles marcados pela rejeição da ambivalência — esse elemento estrutural da condição humana — e pela unilateralidade emocional e cognitiva.


Quando alguém narra suas relações familiares, o desenrolar de um casamento, ou mesmo os altos e baixos de uma amizade profunda, de forma linear, sem contradições, sem reconhecer problemas relevantes, dificuldades ou falhas — mesmo que misturadas a momentos de grande alegria —, estamos diante de um sinal de alerta. Descrever pessoas próximas como figuras absolutamente perfeitas ou totalmente imperfeitas, negando nuances, recusando-se a admitir contradições ou críticas, insistindo numa narrativa única e inquestionável, muitas vezes com tons de competição emocional, pode ser a expressão de um núcleo psicótico da personalidade. Prefiro pensar, hoje, conceitual e clinicamente, nesses casos, como manifestações de um aspecto psicótico da personalidade.

Trata-se, no fundo, de uma negação da realidade — das próprias falhas e também das falhas alheias. O contato genuíno com a realidade é sempre dual: tudo que é concreto, palpável, e avaliado de forma honesta carrega ambiguidade, estranheza e mistério. O outro nos é sempre, em alguma medida, estrangeiro. E nós mesmos, a nós próprios, também.

m todo caso, a saída psíquica da contradição e do não saber pode não resultar em alucinação ou delírio, como nas situações mais severas, relacionadas aos casos de psicose predominante; mas, para tomar emprestado um termo de Bion, em alucinoses, formas com gradações de negação da realidade, aparecendo em personalidades neuróticas ou perversas, evidenciadoras do teor psicótico inerente ao ser humano – que, tantas vezes e em diferentes níveis, é invadido e, em decorrência, invade suas relações afetivas com a própria psicose...

Em Bion, encontramos que a alucinose diz respeito a um contexto psíquico no qual algum sujeito, especialmente a partir da parte psicótica da personalidade, experimenta certa desconexão da realidade por meio de símiles de alucinações ou delírios. Tal desconexão constitui maneira de evitar situações frustrantes, trocando-as por fantasias onipotentes. Bion fez uso do vocábulo “alucinose” para descrever a experenciação (e desenvolveu essa visada em sua teoria das Transformações), na qual o psiquismo luta por uma realidade alternativa para lidar com o desprazer.

A alucinose, assim, não é somente experiência alucinatória, mas estado psíquico complexo – que resvala nas tentativas de enfrentamento de enquadres dolorosos e de se manter algum equilíbrio, mesmo que mediante o recurso a uma realidade distorcida.

Do ponto de vista do que agora arriscarei aqui chamar de “alucinose intelectual”, comento brevemente sobre a maneira tosca com que alguns “intelectuais” ou “profissionais” tentam destituir a psicanálise e sua clínica do caráter de atividade científica.

A psicanálise, com Wilfred Bion, ganha o status de ciência da complexidade, como a física quântica. Não se trata mais de pensá-la como paradigma que visa causas e efeitos, mas certo modo de refletir que trata das simultaneidades, confluências de fatores e possibilidades contínuas de avanços dentro do desconhecido.

Penso que Bion, assim, sofistica e amplia, levando à extensão mais produtiva possível, o conceito freudiano de sobredeterminação. Em decorrência, proponho que o debate sobre a psicanálise como ciência não pode ter a pobreza de espírito que apresenta atualmente.

A psicanálise se encaixa, como a perspectiva quântica, no pensamento complexo, já tendo se alçado, há décadas, como ciência complexa. Dizer que, se algo dela não é replicável em laboratório, isso a tornaria não científica, é apresentar uma opinião extremamente limitada, fechada e ingênua, que nega, por exemplo, as particularidades do método empírico-clínico (tão bem usado por Freud...), fraca em termos de filosofia da ciência e limitada em grau de fato grave...

A ciência sem arte(sanato) cria uma ilusão obtusa e absolutista de precisão, apenas negando a sobreposição gigantesca de diferentes fatores que se ligam aos fatos. E a arte da psicanálise envolve um tipo aberto de ciência complexa da vida.

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