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INFLUÊNCIA INTELIGENTE TODO DIA

A ilusão da certeza: Bion e Wittgenstein à volta do saber possível

O psicanalista Edson Manzan Corsi percorre as obras de Bion e Wittgenstein, para desenvolver sobre o valor basilar da incerteza, tanto em filosofia quanto na clínica analítica.

O filósofo austríaco Wittgenstein, ao lado de um manuscrito de sua autoria

Vivemos em uma época que venera a profusão de fórmulas, como se o
conhecer irrestrito fosse não apenas almejável, mas também atingível;
e isso aparece na mídia através de uma pletora de informações, além de
promessas constantes sobre fórmulas “infalíveis” acerca dos mais distintos aspectos da vida... Entretanto, as cogitações do psicanalista britânico Wilfred Bion e o pensamento filósofo Ludwig Wittgenstein, embora fale-se de autores advindos de campos diferentes, afluem para um ponto decisivo: a necessidade de desistência ante a procura por verdades incontroversas. Para ambos, a fidúcia é uma arapuca que entorpece o pensamento e evita o contato legítimo com a complexidade da vivência humana, seja ela interior ou objetiva. Eles indicam, cada um a seu modo, uma audaciosa alteração de foco: do saber peremptório para a capacidade de tolerar a dúvida – e o não saber.


Wittgenstein, em suas Investidas Filosóficas, evidenciou que a linguagem não é um espelho cristalino dos fatos, mas certo jogar, de regras modificáveis e contextuais. O pleito por fundamentação última quanto ao conhecimento, para ele, é sem solidez. Sua famosa máxima "o que não se pode falar, deve-se calar" não é mais uma limitação, mas torna-se reconhecimento dos limites do que pode ser significativamente manifestado. A certeza que ambicionamos não habita em alguma veridicidade metafísica, mas no uso trivial da linguagem, em suas “certezas” práticas e não totalmente discerníveis, como a de que o cosmo existe... Questionar isso, por exemplo, é perder-se em um labirinto fulgurante de dúvidas...


Por sua vez, Bion transportou esse colapso da certeza para o âmbito da psicanálise. Ele sustentou que um analista deve agir "sem memória e sem desejo", isto é, deve deixar suas perspectivas conceituais e esperanças prévias para conseguir abranger a veracidade emocional do paciente. Para Bion, o pensar genuíno só brota da aptidão para tolerar a frustração ligada ao não saber, circunstância que ele nomeou como "fé". Nesse senso, a psique precisa de espaços ocos, de incertezas, para que novas ideias possam aparecer, ao invés de serem sufocadas por verdades pré-concebidas e “classificadas”.


Apesar de suas vertentes distinguidas, Bion e Wittgenstein nos transmitiram um alerta análogo: a ânsia pela certeza é oponente do pensamento aberto. Ambos nos chamam a certa postura de humildade intelectual, em que o valor se encontra no processo ininterrupto de averiguação, e não na detenção de algum saber estagnado. Nesses modelos, o desenvolvimento, tanto individual quanto coletivo, funda-se na coragem de residir nas zonas de escuro e indeterminação, distinguindo-se que o conhecimento mais denso, muitas vezes, começa com a aceitação de que... não sabemos...

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