Sumário
Uma pesquisa nacional, publicada em 2022, revelou que quase 9 em cada 10 brasileiros já viveram experiências espirituais ou religiosas marcantes — como sensação de presença de pessoas falecidas, sonhos premonitórios ou momentos de união com algo maior.
O levantamento, conduzido on-line com 1.053 participantes de todas as regiões do país e publicado na PubMed e na SAGE Journals, mostra que 92% relataram ao menos uma dessas vivências ao longo da vida, e 47,5% afirmam que elas ocorrem com frequência, indicando que tais experiências atravessam classes sociais, faixas etárias e níveis de escolaridade.
O estudo entrevistou brasileiros adultos, distribuídos por todas as regiões do país, por meio de questionário on-line. Foram investigadas 16 diferentes experiências espirituais ou religiosas (SREs, do inglês spiritual and religious experiences), classificadas em quatro categorias principais:
- místicas (‘mystical’)
- mediúnicas (‘mediumistic’)
- psi-relacionadas (‘psi-related’)
- experiências de vidas passadas/ quasi-morte (‘past life/near-death experiences’)
A prevalência dessas vivências foi calculada em percentuais, e foram feitos modelos de regressão multinomial para explorar associações sociodemográficas.
Principais resultados e gráficos
A seguir, destacam-se os resultados centrais — em seguida, interpretamos os impactos.
Prevalência global
- 92% dos participantes relatou ter passado por ao menos uma SRE ao longo da vida.
- 47,5% declararam que ao menos uma SRE acontece com frequência (“frequently”) em suas vidas.
Por categoria de experiência
- Cerca de 35% relatou ao menos uma experiência mística (como “união com Deus ou algo maior”).
- Aproximadamente 27,7% relatou ao menos uma experiência psi-relacionada (por exemplo, sonhos precognitivos).
- Em torno de 11% registrou ao menos uma experiência mediúnica (como sentir presença de espíritos ou comunicação com falecidos).
- Especificamente, quase 50% disseram ter “sentido a presença de uma pessoa morta”.
- Aproximadamente 70% relataram ter tido pelo menos um sonho precognitivo (visões ou sensação de antecipação de algo futuro).
Variáveis sociodemográficas
- As SREs mostraram associação significativa com o gênero feminino (mulheres relatando maiores taxas).
- Não foram encontradas associações estatísticas significativas entre SREs e escolaridade, renda ou situação de emprego.
- Experiências místicas mostraram uma associação com faixa etária de 55 anos ou mais.
Prevalência de SREs ao longo da vida vs frequência

Prevalência por categoria de SRE

Observação: os valores de “sentiu presença de morto” e “sonho precognitivo” remontam ao relatório detalhado complementar.
Interpretação e implicações
- Altíssima incidência — Que 92% da amostra brasileira refira ao menos uma SRE mostra que tais vivências são quase universais e não “raras” ou “anômalas” no sentido de serem exceção.
- Frequência significativa — Quase metade (47,5%) relata que essas experiências se repetem com frequência, o que implica que elas não são episódios isolados, mas parte da vida de muitos brasileiros.
- Categorias distintas — A variação entre categorias (místicas vs mediúnicas vs psi) sugere diferentes tipos de experiências, com diferentes graus de incidência e possivelmente de significado. Por exemplo, sonhos precognitivos (~70%) são muito mais frequentes que experiências mediúnicas (~11%).
- Sociedade e saúde — O fato de não haver associação com nível de escolaridade, renda ou emprego sugere que essas experiências atravessam as camadas sociais e econômicas, e devem ser compreendidas como parte integrante da experiência humana brasileira — e não restritas a subgrupos “esotéricos”.
- Gênero e idade — A maior incidência entre mulheres e em pessoas com 55 anos ou mais (no caso das experiências místicas) pode refletir tanto fatores culturais quanto biográficos — por exemplo, maior abertura ao tema, maior tempo de vida para vivenciar essas experiências ou diferentes formas de interpretação.
- Saúde mental e clínica — Os pesquisadores destacam que tais SREs não são necessariamente indicativas de transtorno mental, e seu reconhecimento pode oferecer novas perspectivas para a prática clínica e de saúde mental.
Contexto brasileiro e mundial
Embora estudos anteriores em países da Europa e América do Norte já sugerissem elevada prevalência de experiências “não-ordinárias”, há poucos levantamentos nacionais em países de língua portuguesa ou com culturas religiosas tão diversas como a do Brasil. Este estudo amplia o leque de compreensão ao situar o fenômeno em contexto brasileiro.
O Brasil, com sua rica diversidade religiosa, sincretismo e tradições espirituais, parece refletir uma realidade em que tais experiências são normalizadas culturalmente — algo que ajuda a explicar os números elevados.
Consequências práticas do estudo
Para quem vive em Goiânia, acompanha e sente as transformações culturais, políticas e socioeconômicas brasileiras, o estudo traz reflexões importantes:
- Se 9 em cada 10 brasileiros relatam ao menos uma experiência espiritual profunda, então ela pode se manifestar na vida de qualquer pessoa — inclusive as que não se consideram “espiritualistas” ou “religiosas”.
- Essa universalidade abre conversas: sobre como as instituições de saúde mental recebem pessoas que relatam tais experiências; como a educação pode refletir esse elemento de humanização; como as organizações sociais e culturais dialogam com essas vivências.
Limitações e próximos passos
Os autores reconhecem que, embora seja nacional, o levantamento teve restrições:
- Foi realizado on-line, o que pode excluir pessoas sem acesso regular à internet ou de faixa etária mais elevada.
- A amostra, embora abrangente, não substitui um levantamento com amostragem probabilística.
- A classificação das experiências e a medida de “frequência” dependem de autorrelato, suscetível a viés de memória ou interpretação subjetiva.
- Ainda não há ligação direta e aprofundada entre cada tipo de SRE e impactos longitudinais na saúde física ou mental — questão que os autores indicam como urgente.
Conclusão
Este estudo convida a sociedade brasileira a reconsiderar o que se entende por “experiências espirituais e religiosas”: longe de serem raras ou marginais, são vivências amplamente distribuídas e frequentes — atravessando gêneros, classes sociais e faixas etárias. Para profissionais da saúde, pesquisadores, educadores, gestores e cidadãos interessados em cultura e bem-estar, entender essa dimensão pode abrir novos caminhos para acolhimento, humanização e integração entre ciência e espiritualidade.
Fica o convite: na próxima vez que você ouvir alguém dizer “tive um sonho que parecia prever algo” ou “senti alguém que já partiu ao meu lado”, imagine que essa pode ser uma experiência registrada por quase metade da população — e que talvez mereça ser escutada com profundidade, cuidado e curiosidade.
Os autores do estudo “Prevalence of spiritual and religious experiences in the general population: A Brazilian nationwide study”, publicado em 2022 na revista científica Transcultural Psychiatry, são:
- Maria Cristina Monteiro de Barros – Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
- Fernando César Leão – Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)
- Homero Vallada Filho – Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP)
- Giancarlo Lucchetti – Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
- Alexander Moreira-Almeida – Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), diretor do Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde (NUPES-UFJF)
- Mario Fernando Prieto Peres – Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (HC-USP)
📄 Referência completa:
Monteiro de Barros, M. C.; Leão, F. C.; Vallada Filho, H.; Lucchetti, G.; Moreira-Almeida, A.; Prieto Peres, M. F. (2022). Prevalence of spiritual and religious experiences in the general population: A Brazilian nationwide study. Transcultural Psychiatry, 62(4), 422–436. DOI: 10.1177/13634615221088701