. Dedicatória:
À memória de meu pai, Edson Leão, agradeço por ter me agraciado com uma visão de futuro tão sensível e consciente, especialmente quanto à responsabilidade para com o meio ambiente.
Edson Manzan Corsi, meu companheiro de vida que veio de uma amizade intensa. Sou eternamente grata por tudo que fez e faz por mim. Contigo, cada dia é um presente e a certeza de um futuro brilhante.
Para meu tio Zé (José Osvaldo de Siqueira), para minha mãe Anair (Wailda Ozília de Siqueira Leão), para minhas irmãs Ana Cláudia de Siqueira Leão Gonçalves dos Reis e Ana Letícia de Siqueira Leão Valle, cujas presenças ainda são um grande incentivo; para minha tia amada Verinha (Vera Lúcia de Siqueira) e para o meu tio dodinha (José Barcelona de Siqueira), que vivem na melodia da minha saudade. Aos seis, minha gratidão infinita. O primeiro aplauso que eu vi foi o de vocês, e ele ainda ressoa em toda a minha arte.
. Prólogo:
Esperava-se o início de uma tarde bonita, em plena primavera do cerrado goiano. O céu, ainda vestido de um azul profundo, acolhia um sol implacável, cujo brilho era embaçado pela poeira e fumaça que pairavam no ar. O vento permanecia taciturno. Nem mesmo as aves ousavam dar um piu, enquanto os cachorros insistiam seus latidos em coro, um lamento contínuo contra um calor intenso – que se arrastava dia após dia.
Joãozinho, o protagonista desse conto, não perdia um único dia de trabalho. Sua função era catar papéis, preferencialmente nos bairros comerciais de sua capital. A lida diária era dura, pois carregava o compromisso solene consigo mesmo: juntar, a cada dia, a quantidade exata de papel que pouparia uma árvore. A meta surgira de uma reportagem televisiva que vira pela manhã, onde tomava seu café matutino. Aprendera que uma árvore produzia vinte resmas de papel sulfite, ou seja, 10 mil folhas... Ao chegar em casa, conferia meticulosamente o material. Precisava garantir que, na manhã seguinte, pudesse entregar à fábrica de reciclagem a sua cota de resgate.
Certo dia, um morador chegou ao barraco de Joãozinho: seu Firmino. Era um goiano alto, moreno e de modos educados, que beirava os 65 anos. A vida, no entanto, havia sido cruel com ele – ela desandou no bolso e no amor... Após a morte da esposa que sempre sonhara em morar na capital, Firmino viu seu mundo desabar. Os filhos, seduzidos pela fortuna do novo cônjuge da mulher que já havia arrumado antes de falecer, puseram-se contra ele... Sozinho e deprimido, deixou sua casa levando somente a roupa do corpo e o esmerado radiozinho colorido que agora fazia companhia até o trabalho. Sem dinheiro e sem conseguir emprego, a única saída que encontrou foi a de contrabandista, montando uma precária banca de meias de futebol importadas e cuecas em uma movimentada avenida do centro.
Em tudo, Joãozinho era o oposto de Firmino. Beirando uns 35 anos, sua história era uma página em branco: nenhuma mulher, nenhum filho, nenhum passado a reclamar. Nordestino, tinha o ar de adolescente perdido, preso num corpo de adulto. Seu humor era lunático: ria de tudo num instante, e no seguinte, mergulhava em um mutismo profundo por dias a fio. Sua âncora, como estabelecido, era o trabalho obsessivo de catar papéis. Dali, vinha o seu parco sustento, que lhe satisfazia por completo – a ausência de ambição era outra de suas marcas. Herdeiro de uma mãe atribulada e de um pai que fugiu sem olhar para trás, Joãozinho carregava consigo uma instabilidade quieta, um desvio sutil das ideias que o isolava ainda mais do mundo.
Os dias passavam sob um calor sempre insuportável. Firmino foi se ambientando ao novo lugar, mas não conseguia se conformar com a solidão da vida corrente – mesmo depois de tudo o que sofreu nas mãos da família. Sua única companhia era Joãozinho, o vizinho mais próximo. O local, abandonado por outros devido ao risco de desabamento no período das chuvas, ficava às margens do Córrego Cascavel, cujas águas corriam para desaguar no Rio Meia Ponte.
Interessado em aproximar-se do vizinho, Firmino se esforçava para quebrar a sua barreira. Todas as tardes, quando voltava de sua banca do centro, via Joãozinho chegando com seus fardos de papel e cumprimentava-o com um sonoro: – Tudo bem? Joãozinho parava. Seus olhos fitavam Firmino por uma fração de segundos, cheios de um temor antigo, e logo abaixavam para o chão. Um orgulho quase inaudível escapava de seus lábios: – Eu tô bão... Sem acrescentar mais uma sílaba, virava as costas e sumia rapidamente dentro de casa, fechando a porta com um ruído seco.
Com o tempo, Firmino começou a estranhar a rotina do vizinho. Aquele homem quieto que vivia catando papéis com uma obsessão tão cansativa, despertou sua curiosidade. Decidiu, então, procurar informações com seu Salim, o dono do estabelecimento comercial mais próximo.
Salim era um turco parrudo, de bigode cerrado e voz trovejante, que viera para o Brasil com a família, fugindo dos fantasmas de uma guerra que não queria lembrar. Firmino se aproximou do balcão da venda com a cautela de quem se chega perto de um cão bravo.
_ Bom dia, Sr. Salim.
O homem atrás o balcão o encarou com as sobrancelhas franzidas. – O que é que o senhor quer?
_ Eu sou o Firmino, moro aqui pertinho, sou vizinho daquele moço que cata papel. Conhece ele?
_ O Joãozinho? Ele vem aqui. E daí? – Salim encurtou a prosa, os olhos fixos e penetrantes.
_ Olha, eu num tô aqui pra julgá ninguém, não. – Firmino baixou a voz, hesitante. – Mas me parece que o rapaz tem uma rotina muito pesada, né? Aquela papelada sem fim...
_ Num sei de nada não. – Salim encolheu os ombros e virou-se para arrumar uma garrafa na prateleira. – Ele passa todo dia com aquele tanto de papel, sempre igual. Leva pra tal da Recicla Vida. Às vezes vem depois pra tomar uma pinga. Só.
_ Ah, entendi...
Seu Salim se virou de repente, irritado:
_ E você? Tem alguma coisa que ver com isso?
_ Eu? N-não, claro!
Firmino engasgou mas se firmou . Não se retraiu. – É que... o rapaz é meu vizinho. Dá pena, difícil ficar indiferente.
O dono da venda cuspiu no chão, num gesto de desprezo. Virou as costas e foi atendendo outro cliente. A conversa tinha terminado.
Mas Firmino teimava em sanar aquela curiosidade. Observava aquela figura lânguida e solitária e pensava, consigo mesmo: “num tenho mais nada pra fazê... Uma nova amizade vai ótimo pra mim”. Decidiu, então, procurar Joãozinho no local onde o rapaz costumava passar o tempo até dormir: um refugio às margens do córrego onde, também, raramente se higienizava.
. Dialética:
Um dia, Firmino se aproximou com cuidado:
_ Ôpa, tudo bem? Você tem um fogo?
Joãozinho deu um pulo, quase caindo da pedra onde estava sentado. Seus olhos arregalaram de puro pânico.
– O quê? Oxe! Mais ocê tá doido, homi do céu?! – gritou, sua voz um misto de choque e indignação. Complementou: – Eu num trago fogo NUNCA pro meu Cascaver! O danado do fogo pode chamá a gente... Se ele chama nóis pra fazê festa junina cum foguera, ele num vai chamá nóis pra fazê queimada? Uai!
Firmino conteve um sorriso. O raciocínio era tão pueril e tão cheio de uma lógica própria que era difícil não achar graça. Mas viu no olhar assustado do rapaz que aquele medo era genuíno. Aquietou-se e decidiu mudar de assunto, tentando acalmar os ânimos.
_ Tá certo, moço, sem fogo. Eu queria só acender o meu pito... – mentiu, deixando o assunto para trás. Fez uma pausa e perguntou num tom mais leve: – Você é catador de papel, né?
A expressão de José mudou num instante. O medo deu lugar a um orgulho radiante.
_ Eu sô sim! Eu sô felizim assim memo... muito felizim, hehe!
Firmino percebeu que o rapaz não desconfiava de sua curiosidade. Era pura candura.
_ E como você veio parar aqui? – insistiu, gentilmente.
Joãozinho sorriu como se a pergunta fosse absurda.
_ Ó, xente, eu sempre vivi aqui, uai! A minha mamãe mim pariu já véinha, aí os dotô falô que eu tenho pobrema de artismo. E deve de sê de verdade, purque eu num crisci nadinha... Ocê tã veno que eu sô piquininim? – seu sorriso era tão cândido que Firmino sentiu um nó na garganta. Qualquer vontade de rir havia desaparecido.
Mais interessado na história do que no diagnóstico, Firmino pediu:
_ Me explica isso melhor...
A resposta foi uma enxurrada de memórias: – A minha mamãe falô que quase pois os bofe pra fora, pra mim parí! Aí, ela mim disse que eu era do tamanho duns baguim de fejão, kkkk, mais aí eu era teimozim... Eu num estiquei nadica de nada - nem cum reza braba, nem cum garrafada!
_ Entendo. Que complicado, rapaz. – Ambos sorriram da tragédia transformada em anedota. – E onde você nasceu?
_ Aqui memo, no Cascaver! – disse Joãozinho com orgulho. – Iguar o meu papai pediu pra minha mamãe.
_ E sua mãe, onde está?
_ Ela tá no céu, bem juntinha com o meu papai do céu! – respondeu, com uma felicidade que não conseguia esconder a saudade no olhar. Enquanto falava, riscava a terra dura do córrego com graveto. Firmino percebeu que aquela tristeza era tão profunda que o próprio rapaz talvez nunca a reconheceria.
_ Óia, eu tô fazeno o meu trabaio direitim, viu?! Purque é preu í pra junto deles, logo, logo! – calou-se de repente, atirou umas pedras na água e ficou a devanear, como se um anjo lhe houvesse sussurrado para se acalmar. Seu olhar, então, se revigorou, bonançoso. – Ocê sabe? A minha mamãe mim falô que o meu papai vai vim mim chamá quando fô a hora!
Quando Firmino perguntou a Joãozinho onde seu pai estava, ele riu.
_ Ôxe, a minha mamãe mim falô que eu sô o anjim dela, uai! Aí, o meu papai do céu mim deu prela! Aí, adivinha quar que é o meu nome?
Cansado, Firmino chutou:
_ Josué?
_ Não, não, não, seu bestaiado! É João Cristo do Nascimento! Bonito, né? É importante... O meu papai era um catadô de paper muito competente... e eu sigui os exempro dele! Até da pinguinha eu gosto, hehe! Esses dia aí, eu ganhei uma muito boa do dono da Recicra Vida!
Firmino acendeu um cigarro, ruminando aquela confusão de paternidade, mas a conversa findava. Joãozinho, encabulado com a persistência do vizinho, despediu-se.
_ O sinhô vai morá aqui mais um tempão?
Firmino confirmou. E acrescentou:
_ Bom descanso! Ah, e meu nome é Firmino! Olha, precisando de algo, me procura!
_ Tá bão, seu Firmino! E o meu nome é João Cristo do Nascimento! – repetiu o abelhudo, partindo em um passo marcial.
Firmino ficou observando a fumaça subindo calmamente. Aquela cena solidificou uma determinação: ele não descansaria até descobrir a razão por trás daquela quantidade imutável de papéis.
Em um dia de calor intenso, Firmino testemunha uma cena alarmante: Joãozinho, à beira de um penhasco, chora e se lamenta, implorando incessantemente perdão ao "papai do céu”. Para afastá-lo do perigo, o vizinho o distrai pedindo um fósforo e uma pequena dose da pinga especial que havia ganhado. Joãozinho concorda, mas com a condição de que ele não acendesse o fogo próximo ao córrego. No entanto, ao invés de voltar rapidamente, o rapaz se perdeu em seu ritual obsessivo de conferir, meticulosamente, os vários pacotes de papéis, deixando Firmino ainda mais intrigado com aquele hábito incompreensível.
Joãozinho, em desespero, culpa-se pelas queimadas, vendo-as como castigo divino. Ele terá que ser demitido, não voltará para a mãe e será abandonado por Deus. Firmino, tomado por uma pena imensa, tenta confortá-lo descrevendo um Deus impiedoso que testa a fé através do sofrimento, um conselho que apenas aumenta a sensação de tragédia iminente.
Apaziguados, os dois concordam em amar a Deus apesar do sofrimento. Firmino, aproveitando a calmaria, pergunta sobre os papéis. Joãozinho, inicialmente assustado por quebrar a promessa feita à mãe, sente, pela primeira vez, a vontade de confessar seu grande segredo.
Joãozinho confessa o seu segredo tão sagrado, sobre o juramento mais solene (“não contar nem para as formigas que vivem nos barracos”). Sua mãe teria recebido uma missão divina para ele: Deus o escolheu para ser “o libertador das dores desse mundo”, incumbindo de salvar a natureza da maldade humana. Esta seria a promessa que ele precisa cumprir para, finalmente, ser chamado de volta ao céu.
. Síntese:
A revelação atingiu Firmino como um golpe. Seu olhar perdeu-se na fumaça das queimadas, e a grandiosidade trágica da missão de João Cristo do Nascimento – um homem simples lutando contra a ganância de um mundo inteiro – tornou-se-lhe dolorosamente clara. Ao ver a expressão insegura do rapaz, que temia não ter sido claro, Firmino reafirmou com convicção sua lealdade como amigo, tentando proteger aquela frágil confiança que acabara de nascer.
O vento quente ganhou força, carregando consigo os primeiros pingos pesados de uma chuva eminente. Firmino, profundamente comovido, finalmente entendia a grandiosa e trágica missão de João. Não era mais curiosidade, mas um genuíno afeto que o movia. Ele havia encontrado, naquela amizade inusitada, um antídoto para sua própria solidão, um sentimento de pertencimento e utilidade ao ser necessário para aquele homem de espírito infantil.
Sobre o juramento de sangue brincado – a promessa de entregar Firmino às jaraquatiricas se fosse traído –, João finalmente confidenciou o cerne do seu segredo:
_ O meu papai do céu contô pra minha mamãe que era pra eu contá o tanto certim de paper que dá pra fazê uma árvre... o tanto de 10.000 fôia. Que aí, fazeno desse jeito, eu tava pagano os pecado do mundo. E assim, minha mamãe nunca ia ficá preocupada de mim deixá sozinho aqui.
Firmino sentiu um nó na garganta. A pureza daquela lógica era de partir o coração. Joãozinho explicou, então, que aquele ritual também ocupava o tempo duro sem a mãe, até que Deus o chamasse - na hora dE’le.
Quando Firmino, ainda perplexo, perguntou porque ele pedia perdão constantemente, a resposta de Joãozinho foi um raio de lucidez em meio à sua confusão mental.
_ Eu peço perdão, eu peço mil perdão! Purque... eu nunca vô podê incontrá a minha mamãezinha de novo! Os homi do mundo num aprende que nunca, mais NUNCA pode queimá as natureza! Dessa forma, eu num vô podê sumi com os sofrimento do mundo... É por causa desses pobrema que eu só peço pro meu Papaizim do céu pra mim perdoá!
Naquele instante, uma ventania forte varreu o córrego e a chuva começou a cair de verdade. João interpretou imediatamente o fenômeno como um sinal divino.
_ Ele já tá mim perdoano, ocê tá veno? A chuva tá chegano, meu amiguim do meu pai do céu! – João exclamou eufórico.
Sua tristeza dissolveu-se em uma alegria pura e contagiosa. Levantou-se e dançou um ritual efêmero de gratidão à chuva, repetindo sua frase de esperança como um mantra: “Ele tá me perdoano!". – Firmino, capturado por aquele êxtase, correspondeu ao amigo e também se fosse dançar.
Então, ele compreendeu. Constatou que raramente João distinguiria o bem do mal de forma convencional, mas que, naquele dia, sua confiança não fora em vão. Ele não poderia salvar João de seu destino ou de sua mente, mas poderia honrar sua missão. Dali em frente, nunca mais levou fósforos para a beira do córrego. E sempre que acendia seu tabaco, convencia José a acompanhá-lo para um lugar distante de qualquer vegetação.
Firmino concluiu que o Córrego Cascavel, mais do que um lugar, era um santuário. Um espaço de contemplação que precisava ser preservado, não por um mandato divino, mas por respeito ao frágil e magnífico universo do amigo que havia conquistado.